sexta-feira, 28 de setembro de 2018

Crepúsculo dos Deuses

Ela estava em sua cama, deitada por cima das cobertas quentes, o rosto voltado para a janela velha e aberta. Ainda não era primavera, mas o clima havia esquentado consideravelmente. E quando ela dizia isso, era para além da questão meteorológica.
 
O céu estava vermelho, e ela sabia que, naquele caso, era mais do que o pôr-do-sol. Ela estreitou os olhos, buscando aguçar a visão, mas daquela distância, só o que conseguia era lacrimejar.
 
O clima havia esquentado, o céu estava vermelho e ela tinha certeza de que tudo era uma questão de tempo até que as coisas saíssem fora do controle. Podia parecer metáfora, mas...
 
Os Céus estavam em Guerra.
 
Ela já vivia longe daquele universo, das complicações familiares e dos conflitos divinos fazia muito. E aqui, na pequena cidade em que ela se encontrava, fazia ainda mais tempo que as pessoas não acreditavam na sua existência, e nem na de nenhum membro de sua família.
 
Ela suspirou, sentindo as costas doerem, motivo pelo qual permanecia deitada. Ali, em seu pequeno quarto, ela via o mundo ao qual pertencera durante tantas eras, onde fora criada e crescera, se destruir. Não que aquilo fosse uma surpresa (tantas guerras já haviam acontecido antes e o mundo sobrevivido), mas daquela vez, ela sentia que era diferente.
 
Daquela vez, ela sentia em suas costas.
 
Desviando o olhar do céu, que se escurecia com o sumiço do sol e camuflava o incêndio que por lá acontecia, ela se virou de lado, mordendo os lábios para não gritar.
 
Havia uma maçã na escrivaninha ao lado da sua cama, e agora ela pensava na ironia por trás daquilo. Tantas frutas para estarem ali, e justamente a mais conhecida de todas era a que lhe fazia companhia. Apesar da ausência de fome, ela precisava comer, portanto tentou reunir forças e se esticar até a fruta e pegá-la.
 
Uma dor lancinante percorreu a sua espinha e ela gritou, caindo no chão em meio aos soluços.
 
Desde o momento em que decidira deixar de lado as suas obrigações familiares, ela nunca mais havia se lembrado de como era a sua antiga vida. Nada, durante tanto tempo, a havia feito se lembrar de suas origens, e seus pais cumpriram a promessa de que a deixariam seguir o seu caminho. A única exceção seria em caso de guerra. A única exceção estava acontecendo e aquela dor era mais do que um aviso. Era O Chamado.
 
Apertando os dedos contra a escrivaninha, ela sentiu seu corpo se abrir, como se uma navalha a cortasse por toda a extensão de suas costas. As costelas pareciam se deslocar e ela perdeu completamente os sentidos, mas não a dor.
 
Sentiu que um clarão tomava conta de seus olhos fechados e, quando ela os abriu não conseguiu conter um suspiro de surpresa, medo e amor.
 
À sua frente, estava ele, estendendo sua mão para ajudá-la. Ela era muito mais nova que ele, sabia apenas de sua jornada, sua expulsão, tantas Guerras antes, mas ainda assim ele era seu irmão. E, Deus, como ele era lindo.
 
Foi então que ela perceber que o crepúsculo havia dado lugar ao amanhecer. Nada mais propício ao portador da luz.
 
Ela pegou a mão dele com força, sentindo seu corpo ser erguido com facilidade. Foi então que percebeu que não era ele quem a erguia, mas as próprias asas que agora se mostravam firmes em suas costas. Asas que, por tanto tempo, ela deixara de ter.
 
Recebendo um olhar de compreensão, de quem sabia mais do que ninguém o que era ser chamado de volta, eles permaneceram de mãos dadas e subiram aos Céus.
 
 
Em uma Guerra entre Deuses, os Anjos sempre eram os soldados mais fiéis.
 



Foto: Bruno Filipi

segunda-feira, 3 de setembro de 2018

o Véu



Ela estava deitada sobre a relva molhada, amarelada por um pálido e frio amanhecer. Seu corpo estava repleto de gotículas de orvalho, que lhe faziam cócegas na medida em que se espreguiçava... vagarosamente.

Seus dedos dos pés tocaram em florezinhas roxas, que ela sabia estarem ali esperando pela luz do sol para se abrirem. Sorriu. Também ela estava à espera do sol para florir.

Sentou-se num movimento quase em câmera lenta e olhou ao redor, recebendo no rosto o cheiro de um novo dia. Tudo o que via era a imensidão da natureza. O vale florido, as árvores frondosas e a floresta que se erguia escura a alguns pés de distância. Sempre se aproximou da entrada da floresta, decidida a, "dessa vez", aventurar-se por entre suas árvores longas e retorcidas, mas nunca levou a cabo suas intenções.

Naquele momento, entretanto, viu seu pés tocarem os galhos retorcidos da primeira árvore, depois da segunda, terceira, e muitas outras. A luz que iluminava seus cabelos acinzentados fora substituída por uma escuridão quase completa, recortada por alguns finos feixes de luz que conseguiam escapar pelo túnel de galhos retorcidos que se estendiam em direção ao céu.

Ela andou por um tempo que não soube definir, percebendo que não saberia mais encontrar a saída. Entretanto, aquilo não lhe era um problema. Respirava o ar frio da floresta como quem pela primeira vez inspira ar puro e verdadeiro. Sentia como se estivesse de volta ao lar, mesmo que nunca houvesse colocado os pés ali anteriormente.

Crack!, um galho seco se partiu com ruído, assustando-a mais que o normal. Ela olhou para o chão, abaixando-se devagar e notando não se tratar de um galho, mas de uma espécie de varinha, tão retorcida quando as árvores ao redor. Nunca fora de crer em contos de fadas, por mais propícios fossem a estas histórias os locais por onde crescera. Vales verdes e cheios de animaizinhos pequenos e exóticos, castelos e casas circulares, florestas negras e ameaçadoras. Eram tantas as histórias que ouvia desde criança que aos poucos elas, ao invés de se tornarem mágicas, foram ficando maçantes e sem graça.

Pegou delicadamente as duas partes quebradas da varinha e, mesmo sabendo que era de uma tolice infantil, encaixou-as, fazendo com que a varinha se tornasse una de novo.

Um líquido prateado escorreu pela emenda da varinha e a envolveu como um véu de seda. Ela não conseguia soltar o objeto, fosse por tamanho espanto ou por alguma coisa oculta que a fazia continuar segurando-a. O líquido escorreu para as suas mãos e aos poucos envolveu todo o seu corpo, com uma cócega fria e formigante.

Envolvida numa espécie de bolha, ela se sentiu sugada para dentro do sonho que tivera naquela madrugada. Uma mistura de vozes sussurrantes, mãos sem dono e uma canção infantil que a faziam se sentir muito bem. Seus pés já não mais tocavam o chão e ela era guiada pelas mãos indefinidas em direção ao desconhecido; uma rainha louvada por súditos fiéis.

O frio e o formigamento sessaram. Ela abriu os olhos e notou que segurava apenas a parte inferior da varinha. Olhou no chão ao redor, procurando a parte faltante, mas não conseguiu encontrá-la. Não havia vestígios do líquido prateado que a havia envolvido, nem mesmo a varinha agora parecia mais do que um mero galho partido. Resolveu guardá-la, contudo, como uma espécie de troféu de sua primeira andança pelas florestas.

Olhando para frente, notou que as árvores agora se abriam para um caminho relativamente largo e iluminado por uma cor azulada. Quase na linha do horizonte, ela avistava o pequeno castelo onde morava.

Recomeçou a andar, com os olhos fixos no castelo, mas deixando o pensamento naquele lugar que ela, pela primeira vez, considerava mágico. Pretendia buscá-lo depois.

Imagem: Pinterest -
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Por Bianca Rolff