quarta-feira, 23 de março de 2016

A Fenda (parte 1)



A manhã estava fria e o orvalho gotejava sobre a relva macia e verde. As árvores acordavam com o vento, e os ainda mornos raios de sol perpassavam os galhos e folhas outonais, vindo a iluminar o chão repleto de pequenas formigas e insetos coloridos. 

Ela caminhava lentamente por entre as frondosas árvores e tocava-as delicadamente. Sentia o musgo nos troncos, a aspereza da madeira envelhecida pelo tempo e podia ouvir a vida que pulsava através de suas raízes sólidas e estendidas. Depois, tocava as flores, sentia o perfume característico de cada uma delas, e sabia que nas manhãs de outono elas se faziam ainda mais altivas (era fato, sabiam dar valor ao momento da queda. Pois não era a queda das flores uma chuva de cores e cheiros?). Viu as abelhas chegarem para a polinização, os beija-flores congelarem o seu movimento no ar e pequenos coelhos saírem das tocas para recebê-la. Beijou-os delicadamente, dizendo-lhes travessuras que os faziam saltitar ao redor.

Caminhou, sentindo os gravetos lhe roçarem os pés e o vento lhe acariciar a face. Fechou os olhos, sentindo-se pulsar, um pulso firme e retumbante, a conexão entre seu corpo e a natureza em perfeita sintonia.

Aproximou-se da fenda azul, sua preferida, pequenina e brilhante, uma fenda de profundidade inimaginável no meio da imensidão da floresta, cheia dos peixes prateados que carregavam a sabedoria. Sentou-se em sua margem e colocou os pés pálidos e finos dentro das águas, energizando-se com o arrepio que lhe percorreu a extensão do corpo. Impulsionou-se para dentro da fenda e mergulhou, ainda de olhos fechados. Deixou que os peixes sentissem a sua presença e se aproximassem, encostando as suas nadadeiras ligeiramente em seus seios, costas e pés. Ela era mais que bem vinda.

Abriu os olhos e sentiu a doçura das águas lhe cobrir a visão, os peixinhos se colocando em uma dança festiva ao redor de si, convidando-a para o balé. Soltou o ar em bolhas azuis e nadou na pequena extensão da fenda, aproveitando para mergulhar bastante em sua profundidade.

Subiu à superfície, sentindo-se renovada e linda. O mundo se encontrava livre das adversidades, e ela se sentia orgulhosa disso. Cuidava dos seus semelhantes com amor maior que o próprio mundo e sua pele brilhava a cada retribuição vista.

Nadou até a superfície e sentou-se na pedra quente, o sol refletido nas gotas em seu corpo como se pequenas pedras de luz. Deitou-se de costas, espalhando os longos e prateados cabelos pela superfície rochosa e, pela terceira vez naquela manhã, permitiu-se fechar os olhos.

Um movimento no ar ao redor. Ela abriu os olhos e levantou-se ligeiramente, quando uma mão lhe passou pela boca, tampando-lhe a respiração.

(continua...)

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