Destaco minha cabeça do corpo, coloco-a em cima da mesa e me observo.
O barulho do gato do lado de fora da janela é insistente e embala as minhas percepções. Vejo um corpo magro, com algumas irregularidades, mas um corpo majoritariamente saudável. O rosto, agora destacado do resto, é um pouco mais arredondado, e sei disso porque, um pouco antes de retirar minha própria cabeça, eu a observava no espelho do celular. Meus dentes, outrora retos e simétricos, hoje se diferem ligeiramente, algo que me enerva a ponto de pensar em colocar uma prótese de cola onde há uma falha percebida apenas por mim.
Esta cabeça olha o corpo e vê curvas, peitos, coxas e pés, mãos ossudas e de dedos tortos, que só eu percebo. Vê uma calça jeans puída, uma blusa com suor abaixo das axilas e um tênis novo, que aperta os pés. Vê um corpo que levanta todos os dias sem reclamar para ir ao trabalho, que se senta numa cadeira desconfortável e passa oito horas de frente para o computador. Esse corpo gosta do que faz, gosta de voltar para casa ainda de dia, de sentar-se na frente da TV e assistir ao seriado de ação americano, sonhando em ser um dia um intérprete tão bom quanto o ídolo que ali vê.
O gato parou de miar, mas deu lugar ao latido dos cachorros. Há tantos cachorros aqui de fora da janela que eu nem sei enumerar. O celular toca ao lado da minha cabeça e sinto que ela vibra sobre a mesa. Desligo a chamada mentalmente e percebo que meu corpo está um pouco mais magro do que eu pensava. Talvez seja minha vista me pregando uma peça, ou a mente me fazendo ver aquilo que eu desejo. Mas ali está o meu corpo.
E ele realmente parece afinar.
Prestando atenção e sem piscar meus olhos, que se arregalam, observo meu corpo se comportar como o balão vermelho do filme de Lamorisse. Num momento, cheio de ar e no outro, não há mais recheio, apenas pele seca revestida por roupas modernas do século XXI. O corpo, que outrora fora saudável, agora não mais existe, seus ossos tendo partido para algum lugar desconhecido entre o céu e o inferno (mas não o pugatório).
Minha cabeça pende por cima da mesa, num ângulo estranho e, assim como meus membros aos quais assistia, começa a murchar. Minha boca se torna sem dentes, meu rosto se encova, os ossos desaparecem e resta apenas a pele flácida que um dia fora tão adorada (por quem?). Não se aplica a mim a expressão "pele e osso", mas algo muito mais profundo de significado. Vejo a minha própria destruição num passe de minutos e sinto "na pele" o processo de decomposição.
Meus olhos, agora, nada mais veem, nem mesmo há cabeça pendente em mesa qualquer.
Sumi de mim mesmo, sem motivos explícitos ou justificados, não houve bilhete de suicídio dirigido à família ou ao amor da minha vida. Talvez não houvesse alguém para quem deixar minhas últimas palavras, ou fossem tantos os que amei que um mero bilhete não seria suficiente.
Sumi. Mas por um motivo ainda mais misterioso, o que quer que tenha sido responsável pelo fenômeno não atingiu meus olhos e minha consciência. Continuo aqui, em cima da mesa, vendo as roupas que antes me vestiam pendendo no chão poeirento das minhas cinzas. O cômodo sem móveis, apenas a mesa onde meus olhos pendem, posicionados como se ainda fizessem parte de uma cabeça completa. Continuo percebendo que minha existência está fadada ao infinito, destacada do meu corpo e, pela primeira vez, acredito que a alma deve realmente ser verdadeira.
Percebo, horrorizado, que não mais poderei fechar os meus olhos, pois não há mais pálpebras protetoras. Nada mais que olhos restam de mim, e essa consciência de que tudo está morto, menos minha vontade de querer morrer também.
Tento, tento de todas as formas bloquear a imagem do nada que se estende diante dos meus olhos, mas é um processo cansativo e vão, que resulta em irritação de minhas íris e uma vontade de chorar que não pode me prover com lágrimas.
Então, num impulso final, viro meus olhos cento e oitenta graus. E vejo o nada. Outro nada. Um nada preto, como um buraco negro no universo, engolidor de luz e de todo corpo celeste que se aproxima. Sinto minha mente alcançar o princípio do prazer freudiano, uma calma nova e que eu não sentia há muito, quando vivo.
As minhas duas opções são o nada. Mas esse último é como fechar os olhos. Então permaneço aqui, na esperança de que um dia meus olhos se tornem velhos, sofram da vista e se apaguem de vez, numa morte condizente com o resto de mim, e levem consigo também a minha mente, consciência que me permite crer que a esperança pode mesmo ser a última a desaparecer.
http://assets1.exame.abril.com.br/assets/images/2014/11/518895/size_960_16_9_buraco-negro.jpg |
Nenhum comentário:
Postar um comentário