quinta-feira, 28 de setembro de 2017

[ D E U S ]


Eu nunca quis ser Deus. Pensar em mim mesmo como alguém cujos ouvidos se enchem de lamúrias de fiéis, de pessoas desesperadas em busca de apoio e de todos aqueles que me procuram apenas nos momentos difíceis, nada disso nunca me interessou. Nem mesmo a sensação de onipotência, onipresença e onisciência, de meu poder misericordioso ou de ajuda, de demonstração de grandeza e importância serviam como chamariz para um título divino. Não, eu nunca quis ser Deus. Mas eu era.

 Não foi algo que escolhi, mas uma condição imodificável. Simplesmente era desse jeito, e não havia o que eu pudesse fazer para que isso se modificasse. Todos os dias me eram consumidos pelo dever de agir conforme as minhas atribuições, conforme os pressupostos não estabelecidos por Ninguém, mas existentes desde o início dos tempos. Em meu caso particular, cabia a mim ser um Deus obscuro, muito mais temido do que adorado, muito mais culpado do que bendito. Eu, dentre todos os Deuses, era o Deus da Morte.

Talvez o nome fosse carregado de uma aura sombria, contribuindo para uma má compreensão dos fatos, mas a verdade é que eu tinha, acima de tudo, a vida em minhas mãos. Cabia a mim decidir o caminho de cada um que andasse sobre a Terra, e no momento de sua morte, encaminhá-lo a uma das possíveis direções: o Céu o ou o Inferno. Não, não como nos livros sagrados humanos, não esta ideia pobre de detalhes sobre jardins e fogueiras, entre o azul e o vermelho, entre o Ar e o Fogo Infinito. Cabia a mim encaminhar cada alma que passasse pelas minhas mãos a um destino rumo à aliviante inexistência ou a permanência perpétua num limbo existencial. Eu era, como não podia deixar de ser, o fiel da balança. Era eu quem a pendia de uma lado para o outro, não existindo a possibilidade de um equilíbrio.

O tempo nunca correu para mim com a cronologia lógica humana, o que nunca me permitiu saber quanto tempo exato me consumiam pensamentos a respeito das minhas obrigações. Muito tempo eu passava pensando sobre a melhor forma de ser este Deus, de levar comigo o destino de cada um e de saber o momento certo de por fim à vida de quem passava por mim... Não era fácil... 

No início dos tempos, eu era mais adorado, havia templos em meu nome e oferendas eram feitas a mim para que os corpos mortos fossem conduzidos ao fim adequado. Inúmeras religiões me nomeavam, eu possuía estátuas e desenhos gravados em pedra e era, muitas vezes, consumido por uma vontade infinita de me tornar invisível e esquecido. Não importava o quanto me bajulassem, o resultado jamais se influenciava pelas crenças humanas e em seus rituais de passagem. Isso, evidentemente, nunca ficou claro para eles. Mas com o tempo, eu fui sendo aos poucos devidamente negligenciado...

Não posso me dar ao luxo de dizer que fui pelos humanos esquecido, mas digo que, para o meu alívio, não mais fui adorado com tanta pompa e circunstância. Não... pensando bem, eu jamais poderia ser esquecido. Talvez eu fosse, cheguei inúmeras vezes à mesma conclusão, o único Deus lembrado insistentemente, ainda que muitos passassem a crer na existência de um Deus único. No fim, as maiores lamúrias vinham por e se dirigiam a mim. Todavia, eu agora era apenas "Deus", aquele que não olhou por alguém, que não impediu que algo acontecesse, ou, em alguns casos, o "Deus misericordioso" e dos milagres.

No incontável tempo em que me debrucei sobre meus próprios pensamentos, exercitei a arte da probabilidade e da experiência. Dizer a mim mesmo qual a melhor forma de agir era sempre uma das maneiras de me manter ativo e à frente do meu tempo, ainda que esta expressão se tornasse inútil para quem tinha pela frente o infinito.

Foi então, que diante da humanidade em seu auge de desenvolvimento tecnológico e científico, um mundo em que os Deuses foram quase relegados a segundo plano, eu vi finalmente a melhor maneira de agir e de me sentir confortável com a minha posição. Controlar a existência da forma mais natural e confiante possível, tendo a vida em uma mão e a morte na outra. Exercendo meu poder divino de forma demasiadamente comum.

Sozinho, eu me preparava para mais uma noite em claro. Mais uma em que seria o fiel da balança, mais uma que, depois de um tempo, se esvaneceria como construções de areia, mas ficaria gravada em minha memória como todas as demais escolhas que fiz e decisões que tomei... Uma entre tantas as noites em que cumpri o meu destino imutável e divino. Foi quando a porta de vidro se abriu e uma voz conhecida me chamou:

- Tudo pronto, Doutor. A paciente já está na sala de operações.

Fonte da Imagem: Reprodução/thatsreallypossible

domingo, 24 de setembro de 2017

A Rosa da Vida - O Retorno a Semsar


Ela não gostava de contos de fadas, tampouco ser chamada de princesa. Entretanto, quando o viu pela primeira vez, acreditou que ele pudesse ter saído de uma das histórias que tanto evitava. Só não imaginava que "felizes para sempre" fosse realmente tão longe da realidade que se formava à sua frente.

***

Ali, naquela noite chuvosa e com ventos arrebatadores, tudo o que ela queria era ter se lembrado de ter levado consigo um guarda-chuvas. Nem mesmo a marquise impedia que a água fustigasse seu rosto e o vento rodopiasse à sua frente, carregando folhas e galhos das árvores mais próximas. Aquele parecia não ser o seu dia de sorte. Mais cedo ela já havia se machucado ao tropeçar na escadaria da faculdade e cair sobre um estilhaço pequeno de vidro, suficiente para lhe abrir um corte no braço. Não seria nada demais, exceto pelo corte ter acontecido onde ela já possuía uma cicatriz antiga. Agora, o céu parecia ter aberto todas as comportas e decidido inundar o mundo de vez. Ela estava prestes a tomar coragem para atravessar os quatro quarteirões que restavam até a sua casa, quando ele virou a esquina e a encarou. 

Não, não olhou para onde ela estava, para um local próximo ou para alguém que também esperava a chuva cessar. Ele olhava diretamente para ela, como se sempre tivesse o intento de lhe encontrar. Ela aguardou que ele se mexesse, mas nenhum movimento se fez, e ela tinha a impressão de que ele nem mesmo se dava ao trabalho de piscar.

Decidindo-se pela coragem e por uma curiosidade que a assolou avassaladoramente, ela saiu para a chuva, encharcando-se no instante em que deu os primeiros passos em direção ao homem desconhecido.

De fato, ele a esperava. Tinha - agora ela via com clareza - os olhos do mais pálido azul que ela já vira, quase confundindo-se com o branco das laterais. Ao chegar até ele, sentiu o toque de sua mão gelada apertando-lhe o pulso e encostando-a contra o peito.

- Eu te levo para casa.

Ela tentou falar que não precisava, que não o conhecia, que não saía aceitando "caronas" de desconhecidos, mas tudo o que conseguiu foi segui-lo em silêncio, pela chuva.

Bastaram alguns passos para ela estacar, boquiaberta. Ele estava completamente seco, por mais que as gotas vindas do céu se tornassem cada vez mais grossas e dolorosas. Notando a sua parada, ele se virou e a puxou delicadamente, formando uma barreira contra a chuva no local em que a tocava.

Entraram em um beco escuro e ela começou a se considerar louca por seguir um homem que além de não se apresentar, parecia ter saído de alguma história fantasiosa e surreal. Ela sacudiu a cabeça para liberar os pensamentos, mas quando abriu os olhos novamente, prendeu a respiração.

Não se achava mais no beco escuro, mas em uma ampla sala. Ampla era uma palavra modesta. Estava num salão gigantesco, com candelabros presos ao teto e cortinas de veludo vermelho que cobriam metade das inúmeras janelas de vidro.

- Que lugar é esse? - ela perguntou, olhando ao redor. Sentia tanto frio que as palavras saíram gaguejadas, como que num idioma diferente.

Ele a encarou e, pela primeira vez, piscou os olhos pálidos e sem vida.

- A sua casa.

Antes que ela pudesse dizer qualquer coisa, ele saiu de vista, fechando uma grande porta de madeira com um estrondo.

Não, ela não gostava de contos de fadas. E quando afirmava isso, não se referia às versões modernas de estúdio de cinema que buscavam dar finais felizes para as narrativas originais. Ela se referia às histórias antigas, sombrias, que em sua grande maioria continha finais trágicos e repletos de sangue e devastamento. Essas histórias - essas sim - faziam-na querer distância dos livros das bibliotecas públicas, dos arquivos antigos recém explorados e dos sites secretos da internet. Entretanto, aquele homem... Ela já o tinha visto antes e a sua presença imediatamente a remeteu a uma dessas histórias...

Ele lhe estendeu uma toalha limpa e uma muda de roupas, fazendo-a gritar. Não tinha notado o seu retorno e, reparando-o mais uma vez, seus olhos pareciam realmente muito mais intimidantes do que antes.

Ela pegou os objetos e, sem se importar com a presença dele, secou-se e trocou de roupa. Quando seca e confortável, finalmente questionou:

- Quem é você, porque disse que essa é a minha casa e de qual universo paralelo você veio?

Ela não esperava o que aconteceu em seguida. Puxando-a pela cintura, ele lhe deu um beijo.

Um choque percorreu todo o seu corpo e foi como se um filme passasse em alta velocidade pela sua mente. Ela pequena, correndo pelos jardins de um castelo muito bonito e nevado... Então sendo apresentada a um único botão de rosa no meio da neve... O tempo passando e ela, já mais velha, indo cuidar da rosa única todos os dias... A rosa parecia perfeita, exceto por uma única pétala negra, que sempre murchava ao entardecer... Um relâmpago... A escuridão no céu... Então ele apareceu... tão bonito e imponente, porém seus olhos eram de um castanho profundo... Um beijo sob a lua... As mãos pousadas sobre os corações um do outro... Um clarão... Ela estava de volta ao salão, repleto de convidados... Ele se ajoelhou, abriu uma caixa de joias e... dentro dela, havia uma pétala da rosa vermelha... Uma explosão... Um homem encapuzado de vestes negras colocou as mãos sobre os olhos do jovem e com um estalo, os queimou, tornando-os de um azul pálido... Tudo ficou preto... Ela saiu correndo pelo jardim nevado e viu a rosa murchar aos poucos... Ela passou raspando nos espinhos da rosa... Um corte no braço... Sangue caindo na neve... O homem encapuzado saiu em seu encalço, mas antes que ele a alcançasse, ela entrou por uma fenda na árvore mais velha do jardim e desapareceu...

Soltando-se do beijo, ela caiu no chão, sem ar.

- Eu me lembro... Você é Ian, o Príncipe do Reino do Noite. Você foi o único que conseguiu encontrar a pétala da Rosa da Vida... Então você a trouxe para mim, para que ela se juntasse às demais... Mas o Vollum descobriu sobre a Rosa, e se ela estivesse completa, todo o seu esforço para destruir os Cinco Reinos estariam perdidos - ela falava sem respirar, num fluxo constante - Então...

- Ele nos achou, queimou os meus olhos para que eu não conseguisse mais vê-la - disse ele, os olhos cada vez mais pálidos -  Só que você conseguiu fugir... Quando passou pela fenda na Árvore Elda, você foi parar na dimensão 2149... 

- E esqueci de tudo o que aconteceu aqui antes... até...

- Até eu encontrar você.

Um silêncio se fez entre eles. Ela não conseguia acreditar que ele não a via, de fato. Todo o seu jeito, o modo como andava, se portava... o jeito que havia olhado para ela durante a tempestade...

- Como conseguiu ir para 2149? - ela perguntou, ainda tentando processar todas as informações.

Ele não respondeu de imediato. Quando falou, sua voz era suave, porém ligeiramente trêmula. Algo que passaria imperceptível por quase todos. Quase.

- Quando você desapareceu pela fenda, ela se fechou. Você sabia que isso aconteceria, eu cheguei à conclusão depois de um tempo. Entretanto, à época, não compreendi qual a sua intenção. Quando fugiu, o caos se instalou completamente nos Reinos. Vollum destruiu com facilidade a Rosa, mas ficou furioso pela Princesa Vermelha, Guardiã da Rosa da Vida, ter saído impune e destruiu tudo que tivesse ligação com você.

Ele fez um gesto para o entorno e ela sentiu o peito arder. Não havia mais nada além de um esqueleto do que fora seu belo e seguro castelo um dia.

- Acho que uma espécie de indiferença se apossou de Vollum e ele me poupou. Talvez por achar que cego eu nem mesmo serviria para o gasto de energia que teria ao me matar. O que ele não sabia - os olhos dele se cravaram novamente nos dela, e ela teve certeza de que ele a via -, é que ao retirar de mim a minha visão comum, ele de algum modo me permitiu... sentir você.

Um formigamento se apossou do corpo dela e ela sentiu algo há muito esquecido. Ian não era apenas o Príncipe do Reino do Norte... Era muito mais que isso.

- Como foi que você me achou, Ian? - ela tornou a perguntar.

- Por muito, muito tempo eu fiquei perdido. Não havia quase ninguém por perto, tudo parecia ter sido completamente destruído, e viver sozinho sem meus olhos parecia pior que a morte. Então... Num dia de chuva como hoje... algo mudou. Foi como se uma espécie de fumaça se fizesse à minha frente. E essa fumaça formava em meus pensamentos a sua imagem. Fraca, mais ainda assim era você. Isso aconteceu mais algumas vezes, todas elas em noites de chuva, e eu soube que, de algum modo inexplicável, eu conseguia sentir você.

Ian passou a língua nos lábios para umedecê-los e prosseguiu:

- Nunca saí das redondezas de Semsar desde o ataque de Vollum (creio ter sido dado como morto para o meu Reino, o que nem mesmo fez alguma diferença para mim, dado que eu me considerava morto por dentro), então decidi há algum tempo me aproximar da Árvore Elda, na esperança de que ela me desse alguma luz. Foi aí que hoje, em mais uma noite de chuva, eu senti você. Mas dessa vez, não foi apenas sentir. Eu realmente vi você, clara como nunca. Então, a Árvore Elda, como se também entendesse, tornou a abrir a fenda por onde você passou e... bem, eu te trouxe de volta.

Ela olhou para o corte profundo no braço. No exato lugar em que ela havia se cortado nos espinhos da Rosa da Vida quando fugia de Vollum. Um antigo feitiço pagão de localização... Ferir-se no exato local do primeiro ferimento. Mas como Ian conseguiu encontrá-la? Eles teriam que...

O primeiro beijo... A Transferência Secreta de Almas. Um coração pelo outro. Eles eram um só, e tinham feito o pacto em segredo.

- Ian... - ela o encarou com um movimento repentino - Por que você me trouxe de volta? 

- Por quê? - ele pareceu confuso - Ora, porque você me chamou. Não me pergunte como eu sei que era para fazer isso, eu simplesmente soube que era a hora de te encontrar.

- Sim, era mesmo a hora de me encontrar, mas... Não era para você me trazer de volta - o coração dela começava a acelerar, a pulsação na boca - Eu acho que...

- Que Vollum seria tão imprudente de deixar o Príncipe Ian vivo sem motivo? Você é esperta, Princesa Clara.

Ela e Ian se voltaram num único movimento, a tempo de verem uma mulher muito alta e magra surgir da escuridão da noite. Seus cabelos eram cor de musgo e Clara, mesmo antes de tudo acontecer, sempre achara que a existência dela era uma lenda. Ahnna, a Maga Esmeralda, Guardiã do Reino do Leste, Semsar.

- Você voltou, Princesa Clara. E Vollum a essa altura já deve estar sabendo que alguma coisa aconteceu, pois vigia Ian desde o seu sumiço. O que ele, não sabe - Ahnna deu um passo à frente, deixando os seus olhos esmeralda serem iluminados pela luz noturna que entrava por uma das janelas -, é que eu não sou apenas uma lenda. Não temos muito tempo, vocês terão que vir comigo.

- Para onde? - Ian quis saber, a expressão profundamente irritada.

- Para onde vocês possam entender as consequências desse retorno de Clara - Ahnna deu as costas para eles, iniciando uma caminhada lenta - E antes que me perguntem: A Rosa da Vida foi mesmo destruída por Vollum na noite do ataque a Semsar. Mas o poder dela ainda vive. 

Clara e Ian se entreolharam e seguiram Ahnna pela escuridão, mas nenhum dos dois percebeu o corte no braço de Clara se iluminar de um vermelho fogo por pequenos instantes.





quarta-feira, 13 de setembro de 2017

A Lenda do Guardião do Tempo


As histórias de fantasmas sempre serviram a específicos propósitos... Era o tipo de papo para quem queria assustar as crianças, ou manter longe das suas propriedades os arruaceiros da madrugada. Em noites específicas, pessoas em todo o mundo se reuniam em torno de fogueiras em campings para contações de histórias, algumas mais, outras menos convincentes, mas que no frio da noite mantinham a todos ao redor do fogo.
O que não contavam para essas pessoas é que enquanto elas permaneciam aquecidas pelas chamas das fogueiras e pelo calor das narrativas, coisas muito mais interessantes ocorriam em outros lugares...

*** 

Não muito longe do camping da cidade de Vila de Cristo, uma garotinha dos cabelos trançados lia seu livro preferido. Era noite de Dia das Bruxas, e todos os seus irmãos haviam ido para o camping, para a noite de contação de causos. Ela, porém, havia recusado o convite na esperança de ter uma noite inteira de silêncio para poder desfrutar de suas leituras.

Era quase meia-noite e os olhos da pequena menina começavam a lacrimejar, contrários a todos os seus esforços para se manter acordada. Decidida a não se render ao sono, como uma adulta faria, ela saiu debaixo de suas cobertas e, apesar do frio, passou direto pelo casaco dependurado na cabideira e foi em direção à cozinha. Ao passar pelo quarto dos pais, viu que ambos estavam em um sono profundo, e ela andou pé ante pé para não acordá-los.

Quando chegou à cozinha, dirigiu-se até a bancada e, na ponta dos pés, puxou a garrafa de café para junto do corpo. Não era fã de café como seus irmãos mais velhos, mas sabia que aquela bebida quente e forte mantinha as pessoas acordadas e atentas.

Pegou um copo de vidro em cima da pia e colocou metade do copo com café. Quando o bebeu, contudo, quase cuspiu. Estava frio e sem açúcar. Ficando na ponta dos pés, despejou o resto do líquido na pia e estava prestes a lavar o copo quando o viu, pelo vidro da janela.

Lá, entre as árvores do jardim. Um lobo branco, de olhos vermelhos e um brilho intenso vindo de seu peito.

A menina se arrepiou. Era a primeira vez que via um lobo, e aquele parecia muito diferente do lobo que lia em suas histórias favoritas. Foi até a porta da cozinha, abriu-a para a noite gélida e saiu para o jardim.

A sua camisolinha fina balançava com o vento, mas ela se encaminhou para onde o lobo estava, estático, encarando-a. Não tinha medo dele. Queria provar que era uma garota de coragem, inclusive para dizer aos seus irmãos mais velhos o que havia feito.

Ele, o lobo, permanecia parado. Seu pelo branco era a coisa mais bonita que ela já havia visto. Aproximando-se mais, a menina percebeu que o que ela vira brilhando no peito do lobo era na verdade uma corrente prateada, de onde pendia um relógio fechado. Ela sabia porque era igual o relógio de bolso do seu pai. Não se contendo mais de excitação, ela estendeu a mão para tocar o pelo macio do lobo.

Nesse instante, a lua saiu de trás das nuvens e clareou todo o jardim. Quando sua luz iluminou o lobo, algo muito mais impactante aconteceu. A mão da garotinha, que estava prestes a tocar o animal, atravessou-lhe, pegando o vento.

Piscando, a menina olhou para o lobo e engoliu um grito. Ele não tinha mais um corpo real. Era como um espírito, um fantasma fosco, por onde ela via o restante das árvores do jardim. Apenas os olhos do lobo pareciam não ter perdido o brilho vermelho como fogo.

Ao puxar sua mãozinha, ela tocou o pingente no pescoço do lobo. Então o pingente era real! Ela apertou a ponta superior do relógio e ele se abriu, revelando as horas.

Meia noite.

Um grito foi ouvido de dentro da casa, e a menina imediatamente correu de volta, trancando a porta da cozinha e nem mesmo olhando para trás. Subiu as escadas rapidamente e ao chegar no quarto de seus pais, viu a mãe de pé,  parada, com o olhar horrorizado.

- Ele... ele acordou...foi olhar as horas e...

Ao contornar a cama, a menina entendeu. Seu pai estava caído no chão, os olhos abertos, vidrados. De uma de suas mãos, pendia o relógio de bolso, aberto, marcando meia-noite.

A menina olhou pela janela, à procura do lobo, mas ele não estava mais ali.

A menina acordou, gritando. Ainda estava em sua cama, com o livro aberto sobre o colo. Ela olhou para o relógio em sua cabeceira. Ele marcava 23h57.

Saindo correndo, ela foi até o quarto de seus pais bem no momento em que seu pai estendia a mão para olhar o relógio de bolso.

A menina se jogou na frente dele, jogando-o para o lado e impedindo-o de abrir. Colocou o seu livro preferido sobre o colo do pai e, apontando para a história, disse:

- O Alba Lupus, papai. O guardião do tempo, que nas noites de lua cheia...

- ... A cada 2150 anos, capta a vida de pessoas que olham para o relógio à meia noite, para manter a roda do tempo girando. Filha, isso é só uma lenda. Além do mais, eu que escrevi ela pra você, a partir de um sonho que tive com o meu relógio...

Um barulho oco foi ouvido e ambos olharam para o lado.

Caída no chão, com o relógio de pulso entre as mãos e os olhos vidrados, estava a mãe da garotinha.

Puxando o pai pelas mãos, a menina viu pela janela os olhos vermelhos do lobo desaparecerem, aos poucos, entre as árvores do jardim.

domingo, 10 de setembro de 2017

O Piano de Segredos

Sempre tive uma grande apreciação por instrumentos musicais, de forma muito especial pelo piano. Desde pequena, ia ao conservatório perto de casa para ouvir os ensaios das orquestras, aguardando ansiosamente pela parte em que o pianista testava notas, improvisos, e solos repletos de uma melancolia vibrante, algo que preenchia todos os espaços do meu pequeno corpo. Ficava ali, escondidinha na plateia vazia, quase que encoberta pelas fileiras de cadeiras à minha frente, ouvindo tudo de olhos fechados... maravilhada.

Fui crescendo, e minha paixão aumentando. Não se tratava de uma vontade de tocar o instrumento, mas de ouvi-lo o máximo possível. Era quase uma obsessão. Eu não conseguia deixar de ouvir pelo menos um pouco que fosse do som profundo e arrepiante das mãos habilidosas que davam vida ao piano e, via de consequência, a mim mesma. A cada nota compartilhada com meus ouvidos, mais meu corpo vibrava em resposta e meus sentidos se faziam completos. 

Minha trilha sonora, pensei num momento de descontração mais recente, talvez se aproximasse dos clássicos de Hitchcock e tantos outros mestres do suspense. Para mim, a audácia da comparação soava, literalmente, como música para meus ouvidos.

Já na época da faculdade, meus compromissos profissionais se tornaram maiores, e meu tempo para desfrutar de algumas horas no conservatório cada vez mais escasso. Recorri a sites de música, aplicativos para celular, vídeos de internet, mas ainda que me acalmasse, nada supria a necessidade de ver os pianistas criando a partir das partituras. Até mesmo os erros eram magníficos e se encravavam na minha memória.

Lembro-me perfeitamente de sair da faculdade numa tarde fria e nublada, um dia atípico para uma cidade litorânea e tropical como a minha. O vento batia cortante em meu rosto, obrigando-me a subir a gola do moletom acima da boca, dificultando o carregar dos cadernos e pastas que tinha nas mãos.

Naquele dia, não fiz o caminho costumeiro para casa, mas cortei por uma viela com qual passagem eu não estava familiarizada. Quase no fim desta mesma viela, havia uma lojinha chamada "Artefatos".

"Lojinha" talvez não fosse o melhor nome para o lugar, mas foi a primeira ideia que passou pela minha cabeça, tão pequena era a sua entrada, menor ainda a vitrine. Entretanto, não foi preciso entrar e verificar (algo que eu só descobriria tempos depois), o tamanho real da loja e a quantidade de artigos ela era capaz de vender. Na vitrine de vidros sujos e empoeirados havia um pequeno piano, desses de guardar segredos dentro (era assim que minha mãe se referia a eles), com uma pequena bailarina que girava na parte de cima.

Sem pensar muito, entrei na loja e pedi para ver o piano. A vendedora, uma senhora de idade com os maiores óculos que já vi, retirou-o da vitrine e o estendeu a mim. Sem prestar atenção na senhora, num único movimento, dei corda no piano e coloquei a bailarina em cima do suporte.

Uma melodia como eu jamais ouvira invadiu o ambiente. Não era apenas um toca-músicas, como eu imaginara, mas uma composição para piano intrincada e cheia de detalhes. Minha pele se arrepiou num instante e eu percebi que a dona da loja sorria para mim, um sorriso que hoje eu consideraria arrepiante, mas que à época considerei cordial. Sem perguntar mais detalhes, disse-lhe que levaria o piano, no que fui por ela prontamente atendida.

Talvez não seja para você compreensível a potência daquela melodia, mas ela dominou os meus dias a partir de então. Eu não conseguia mais deixar de ouvi-la a cada intervalo de meus afazeres, carregando aquele piano comigo para todo canto. Inúmeras vezes, peguei-me à procura da bailarina em minha mochila, que de tão pequena sumia, aparecendo em locais improváveis.

Eu ficava hipnotizada pelo movimento contínuo e um pouco desengonçado dela que, ao girar sobre aquele suporte, fazia-me esquecer de tudo ao meu redor.

Numa noite fria e chuvosa - outra atípica para o local onde eu morava - cheguei em casa mais cedo e, cansada como estava, resolvi ir para cama. Tomei um banho rápido, apenas para relaxar o corpo e estava me direcionando para o quarto quando a luz apagou. O meu apartamento ficou completamente escuro, mas olhando pela janela do banheiro, parecia ser um problema apenas no meu prédio. Tateei à procura da gaveta abaixo da pia, encontrando nela uma vela e uma caixa de fósforos. Quando acendi o fogo, eu ouvi.

Aquela melodia maravilhosa, hipnotizante do meu piano de segredos, invadia o meu apartamento. Caminhei com a vela nas mãos em direção ao quarto, com intenção de fechar o piano de maneira mais adequada para que não ficasse bambo a ponto de tocar sozinho. Mas na porta eu estaquei.

Não só o piano tocava, como a bailarina estava ali, posicionada em seu círculo, rodopiando de um lado para o outro.

Com as mãos trêmulas, corri até o piano e o fechei, batendo com a tampa em cima da bailarina. Nesse momento, a luz voltou.

Olhei ao meu redor e em todos os demais cômodos do apartamento à procura de alguém, mas não havia ninguém. Decidi, após respirar profundamente, que devo ter andado tão cansada a ponto de nem mesmo me lembrar de ter deixado o piano e a bailarina na posição em que se encontravam.

Certa de ter trancado a porta e todas as janelas, fui me deitar e creio ter adormecido de imediato. Não sei ao certo quanto tempo se passou, mas fui acordada pelo clarão de um relâmpago. Eu nunca gostei de chuva, minha mãe teve o péssimo hábito de dizer para mim que os trovões e relâmpagos eram perigosos e traziam mal agouro. Naquela noite, contudo, não eram eles que me atormentavam. Virei-me de lado, lentamente, e respirei tranquila ao notar que o piano estava exatamente como eu o deixara.

Os dias se passaram sem que nada mais acontecesse, até que cheguei mesmo a me esquecer do ocorrido. Entretanto, creio que por instinto, programei-me de maneira a conseguir, ainda que uma vez na semana, ir ao conservatório, reduzindo bastante o meu uso do piano de segredos.

Foi numa de minhas idas ao conservatório que recebi o convite para o concerto da filarmônica. Por mais absurdo que pudesse parecer a alguém cujo fascínio por piano fosse tão grande quanto o meu, eu jamais havia assistido a um concerto da filarmônica. Minha felicidade foi tanta que passei os dias até o evento contando nos dedos os minutos, tendo todo o resto de tempo se apagado por completo da minha memória. 

Fora uma noite memorável, algo que eu jamais, em toda a minha vida conseguiria esquecer. Ouvir ali, de pertinho, a orquestra tocando composições que sempre fizeram parte da minha vida desde a infância era como tatuagem.

Fui para casa caminhando, aproveitando que as ruas estavam movimentadas e cheias de jovens a curtir a noite. O que não me dei conta, a princípio, foi de ter cortado caminho pela mesma viela antes mencionada. Ela estava escura e deserta, exceto por um facho de luz vindo da lojinha "Artefatos".

Encaminhei-me para ela, os pés começando a formigar. Não sabia ao certo o que me aguardava ali, e não adiantava querer voltar pela viela, pois o caminho de volta era muito maior do que simplesmente continuar. 

Ao parar em frente à pequena vitrine suja e empoeirada, engoli um grito de susto. A dona do lugar, aquela senhorinha do sorriso estranho, estava parada do outro lado do vidro, mas dessa vez o seu semblante era de horror. Sem pestanejar, entrei na loja e lhe perguntei qual era o problema. Olhando-me com os olhos vagos, ela me disse, a voz fraquinha:

- Eu achei que você o levando, a levaria consigo. Mas ela voltou...

Não precisei perguntar sobre o que ela falava. A música do meu piano de segredos começava a tocar.
Saí correndo como jamais havia feito na vida, mas a música continuava a me acompanhar. Cheguei ao meu apartamento com lágrimas nos olhos e fui direto ao quarto, na intenção de quebrar o meu piano e jogá-lo fora. Quando cheguei, a música parou e o piano estava fechado.

A bailarina é que não estava lá.

A luz se apagou. Senti uma mão gelada tocar o meu ombro.

***


Não posso dizer o que aconteceu depois disso. Ninguém acredita, e eu também não posso nada provar. Hoje, de dentro da minha cela branca, nunca mais senti o toque frio na minha pele. Mas de tempo em tempo, a melodia, aquela linda melodia, me visita... e vejo por baixo da porta a sombra da bailarina girando, girando...

Uma sombra em tamanho real.






sábado, 12 de agosto de 2017

[ I n t r a c o r p ó r e o ]



Meu nome, apesar de desnecessário ao relato, é Diogo, e sou perfeitamente são. Sou um cara saudável, em ótima forma física, desses que corre todos os dias pela manhã e se alimenta (ao menos tenta) da melhor forma possível. Sigo uma rotina correta, em termos gerais, sabendo ser exemplo para muitos dos que convivem comigo. Entretanto, vivenciei fato curioso nos últimos tempos, algo que, de tão peculiar, me levou direto a um hospital (coisa que jamais ocorreu sem que fosse para exames de rotina). Algo que nem a mais correta das dietas poderia prever ou prevenir.

Após um sábado regado a mais teor etílico do que estou acostumado, a lapsos de memória recorrentes e a experiências sentimentais conturbadas com minha recente companheira, notei uma constância estranha em meu peito, uma espécie de palpitar diferente, numa frequência que jamais poderia ser mera batida do coração.

Preocupado com minha saúde, temendo ter exagerado demais no happy hour, na briga amorosa e ainda sem uma resposta do meu próprio organismo pós-ressaca, fui a um cardiologista, que me encaminhando a um radiologista, deu-me o diagnóstico: em meu peito havia um outro ser vivo.

Não, isso não é uma metáfora. Havia mesmo algo habitando em meu peito, e não era o meu coração. A minha primeira reação, assim como a de todos os médicos e técnicos envolvidos no caso, foi a de perplexidade. Entretanto, após mais outros dois raios X e incontáveis ultrassons, não havia mais dúvidas de que era possível dois corpos habitarem o mesmo espaço (ou quase isso, mas a frase soou pertinente aos meus ouvidos).

Fui para casa sem uma receita médica e sem respostas, após várias fotos que iriam sair nas revistas de medicina e provavelmente em algum instagram. Apesar de ser alguém sociável, me incomodava profundamente a ideia de dividir o corpo com outro ser. Já não era tão simples dividir o colchão, a escova de dentes, quanto mais o próprio corpo.

A primeira dificuldade que enfrentei foi contar para Juliana. Estávamos nos conhecendo mais intimamente havia algumas poucas semanas, mas eu sempre soube que o ciúme dela poderia explodir a qualquer momento. Era uma coisa de signo, me disseram, mas eu achava mesmo que era algo da Juliana.

Quando contei para ela sobre a peculiaridade, não sabia se ria (de nervoso, agora penso) ou se tentava proteger meu apartamento de ser declarado como "perda total". Ela se enfureceu a tal ponto de me acusar de dar um local em meu peito a um extraterrestre do que a ela. Não valia a pena explicar que não se tratava de um extraterrestre, mas de um intracorpóreo. Fato é que custei a acalmá-la, somente conseguindo um efeito após mostrar uma das radiografias.

Bem ali, do lado do peito. Um ponto preto, que dependendo do momento, crescia até obscurecer por completo o tamanho do meu coração. 

Eu não sabia como lidar com aquilo, tampouco os médicos souberam me dizer, tendo em vista o ineditismo da coisa. Tive, pois, que aprender uma tática de sobrevivência.

Após algumas semanas convivendo com meu novo hospedeiro, fui traçando um perfil para seus movimentos. Percebi que quando eu estava tranquilo, com minha rotina se cumprindo de forma leve e sem problemas, ele parecia nem mesmo existir. Por mais que eu tentasse, conversasse com ele (não sei o que passava pela minha cabeça, talvez um paralelo com uma gravidez?), ele não se mexia. Por outro lado, quando algo em minha vida saía dos trilhos, eu tinha alguma briga com a Juliana e ficava profundamente chateado, ou fazia com que ela se chateasse comigo, lá ia ele, dominando com louvor o espaço no meu peito. 

No início, fiquei irritado, pensando seriamente em pedir uma cirurgia. Como já não bastasse ter que lidar com os problemas de um relacionamento conturbado, ainda tinha que conviver involuntariamente com uma massa indefinida no peito que crescia proporcional ao meu sofrimento. 

Foi então que, num ataque de ciúmes, a Juliana me deixou. Não um ataque dela, mas meu. Não era coisa de signo, mas algo que eu precisava tratar, percebi. Mas parecia ser tarde demais. Logo eu, que sempre achei que o mais difícil do meu relacionamento com a Juliana fosse lidar com a sua personalidade possessiva, fui o responsável por afastá-la de mim. 

Quando ela saiu pela porta, batendo-a atrás de si, pensei que fosse morrer. Um choro repentino foi tomando conta de mim, um misto de raiva e incredulidade, a ficha caindo aos poucos de que o errado era eu e que ela talvez nunca mais voltasse. Deitei de lado na cama, abraçando como uma criança o travesseiro e chorei de perder o tempo. Quando achava não mais haver lágrimas dentro de mim, senti que meu peito começava a bater naquela frequência diferente, indicando que o meu hospedeiro estava ali. 

Ao contrário do que imaginei ocorrer, a dor foi diminuindo.

Não sei ao certo como tudo ocorreu, mas as lágrimas não mais caíam dos meus olhos e a tristeza parecia estar se drenando para algum local dentro de mim. Levantando e me olhando no espelho, percebi o movimento em meu peito se intensificar, na medida em que eu me acalmava cada vez mais. Quando finalmente ele parou de se mexer, eu estava perfeitamente calmo.

Colocando a mão sobre o peito, balbuciei um agradecimento. Aquele ser que ali estava funcionou como um buraco negro, sugando a minha dor e fazendo com que eu tivesse discernimento para pensar com clareza.

Os acontecimentos após a constatação da função do meu companheiro intracorpóreo aconteceram de forma muito complexa, de forma que farei um resumo: 

Sabe-se lá como, a Juliana me perdoou pelas minhas mancadas, mas não sem antes afirmar que só voltaria comigo se eu prometesse uma série de coisas, dentre eles jamais fazer uma cirurgia para tirar meu companheiro do peito. Depois do ocorrido, a Juliana o via com outros olhos, e eu a via com olhos muito diferentes, também.

Como era de se esperar, o caso se tornou um verdadeiro furo científico, e eu fui diagnosticado como sendo o primeiro ser vivo a hospedar um parasita filtrador. "Tumor do Buraco Negro", foi o nome que ele recebeu, e apesar de eu me recusar a retirá-lo, fui avisado de que, como todo tumor, ele poderia proliferar, causando um câncer raro. Compreendi os fatos mas, sabendo do seu real objetivo, preferi lidar com os riscos.

Continuo sendo um cara saudável e completamente são (apesar de inúmeras tentativas da área psiquiátrica e às vezes psicanalítica em darem outras explicações para o meu caso). Minha história talvez pareça ficção, e talvez você possa pensar que ela não tem relevância nenhuma. Mas eu faço uma analogia com a fé: é preciso crer para que ela exista.


Imagem: NASA

- Bia

sexta-feira, 2 de junho de 2017

R.S.V.P.



Prezado Destinatário,


Esta carta se dirige a você, você mesmo, que por algum motivo iniciou a sua leitura e espero possa prosseguir até o final. Pode parecer loucura escrever uma carta para um alguém desconhecido, mas a esta altura, qualquer um tem o poder de se tornar um amigo em potencial, uma ajuda muito bem vinda ou pelo menos alguém com um mínimo de interesse.

Esta é uma carta de amor. Mas não desanime logo aqui! Como bom escritor que sou, "romântico" como diriam meus ex amigos mais próximos, ela possui enredo triste e desastroso. Não venho por meio dela pedir a você, destinatário de minhas palavras, que se case comigo, que se padeça do meu sofrimento catastrófico, ou mesmo declarar o meu amor por você, aquele amor platônico, de observação e genérico que todos sentimos ao menos uma vez na vida e que, muitas vezes, é mais real do que um amor vivido.

Não é isso.

Esta é uma carta de amor. Mas de amor-próprio. Ou talvez seja o compartilhamento de um relato de quem precisa a cada minuto que passa de um parceiro de ouvidos (no caso, de olhos, já que escrevo esta carta)  na caça ao diagnóstico mais importante de minha vida.

Em algum momento de meu passado recente, iniciei uma saga digna de um poeta típico, como diriam os meus ex amigos mais próximos. Por razões múltiplas, muitas delas oriundas de decepções relacionadas a outras pessoas e também de expectativas mínimas criadas, mas que, em acúmulo se tornaram um grande queda (e não quebra) de expectativa, iniciei uma descida aos níveis do Inferno de Dante e não consegui emergir à superfície. É complicado e nem sempre ético querer colocar a culpa pelo seu fracasso no próximo mais próximo, mas muitas vezes, é o que dá início a uma grande reação em cadeia. É complicado, mas bem comum e compreensível.

Há alguns dias, entretanto, passados os momentos de luto por mim mesmo e meus relacionamentos falecidos, acordei com uma grande câimbra no lado esquerdo do corpo, algo que me impedia completamente de sair da cama. Você deve pensar - assim como eu também pensei - que pudesse ser um derrame, ou qualquer coisa relacionada ao coração, como estamos cansados de ver nesses seriados médicos da TV.  De fato, vim a descobrir por conta própria no mesmo dia, tratava-se de um problema no coração. Mas nada de derrame. Eu estava sofrendo de falta de amor-próprio. É como falta de potássio, vitamina C, glicose, só que afeta diretamente a parte do coração que é abstrata. Não o órgão pulsante que temos dentro do peito, mas o coração idealizado por nós como local centralizador dos sentimentos, local onde guardamos todas as nossas tristezas, alegrias, surpresas e decepções.

Nos primeiros instantes, achei que se tratava de ausência de amor para dar. Eu tinha passado por um momento de desilusão tão grande, daqueles em que você aposta a mão de cartas que não tem, só por um vislumbre de felicidade, mas a jogada se transmuta num grande blefe invertido e você termina sem um tostão no bolso e um vazio ainda maior no peito, onde deveria morar aquela pessoa que não mais está lá. A desilusão foi tamanha a ponto de eu não mais olhar com vontade para as coisas interessantes ao meu redor, a ponto de uma simples conversa se tornar perigosa e frágil, ou de minhas mãos tremerem com a simples menção do responsável pela aposta mais alta da minha vida. Esqueceram foi de me avisar que às vezes, os dados podem estar viciados e isso nem sempre é uma coisa boa.

Contudo, aos poucos fui percebendo - em análise profunda, já que sair da cama eu não conseguia, - que esse amor para dar eu tinha e sobrava. Por isso mesmo eu sofria tanto. Havia em mim tamanho acúmulo de amor que eu não sabia como utilizá-lo, e por isso mesmo trancava-o dentro de mim. Seria uma questão de tempo para que eu conseguisse finalmente canalizá-lo para uma boa pessoa, alguém cujo amor por mim também seria em retribuição, alguém cujas vibrações fizessem as cordas da arpa que havia dentro do meu estômago vibrarem no tom correto da melodia. Ora, a vida é assim desde sempre: sempre iremos sofrer por amor (ou por isso que achamos ser amor, mas na verdade é um genérico bem fajuto).

Pois bem, só me sobrava a fatídica opção: a câimbra em meu lado esquerdo indicava ausência de amor, mas por mim mesmo. Você, a esta altura - se é que chegou até aqui - deve estar se perguntando como alguém pode ficar com câimbras devido à falta de amor-próprio. Pois eu lhe explico. 

Para tentar preencher o buraco que se instaurara dentro de mim ante à perda de um grande amor, eu comecei a tentar preenchê-lo desesperada e rapidamente. Com paixões fulminantes de uma noite, várias por semana, a grande maioria delas resultando em pessoas semelhantes a mim (pois sim, eu era a queda de expectativa delas, gerando um ciclo vicioso e muito, muito trágico para a humanidade), com drinks quentes acrescentados de grandes enxaquecas e perdas de memória, com trabalho do qual eu não precisaria em momento algum da vida, mas que ocupava a minha cabeça e não me deixava pensar naquilo que, por pior que fosse, ainda me fazia ter certeza de estar vivo. É engraçado, pensando agora com uma certa distância, quase como se psicanalista de mim mesmo, como buscamos placebos dos mais diversos para as nossas dores. Por um tempo, eles funcionam perfeitamente, até nos fazem achar que finalmente somos capazes de fazer aquela canalização do amor para outras pessoas e coisas de novo. Mas quando percebemos que é placebo...

A gente pensa em canalizar sentimentos para todos os lugares, menos para onde realmente interessa: para nós mesmos. E então: câimbra!

Eu não fazia ideia de como curar aquilo. Tentei de tudo: ligar para o médico, fazer massagem, chamar a ambulância, o corpo de bombeiros, dar entrevista na rádio à procura de conselhos, até mesmo ligar para a minha antiga grande razão de existência pedindo por clemência (ou mesmo para dizer-lhe algumas verdades entaladas que de nada resolveriam). Nada disso adiantava e nem adiantou. Busquei ajuda espiritual, tentei ouvir mantras ou mesmo alguns exercícios mais básicos de yoga... Nada.

A câimbra, como seria suposto, deveria passar em algum tempo. Pelo menos naquele dia. Mas durou. Estendeu-se. Eternizou-se no (meu) tempo e espaço, impedindo-me de fazer quaisquer coisas, inclusive reagir. Nunca achei que fosse tão difícil lidar com a ausência de algo diretamente ligado a mim, mas justamente por a câimbra ser a única coisa que me incomoda de fato, na ausência desse sentimento por mim mesmo (se não fosse por ela, eu nem mesmo notaria a ausência) é que eu não me importaria de continuar neste estado auto-sentimental quase vegetativo. No momento, estou quase vegetando fisicamente, também.

Sabendo que, factualmente, a decisão que tomei talvez surtisse o mesmíssimo efeito de ligar para a estação de rádio mais badalada à pedido de um conselho ou uma ajuda, eis que aqui estou, redigindo esta carta (até mesmo a mais lenta das galinhas cataria os milhos mais agilmente do que eu a lhe escrever, caríssimo destinatário). Matemático que sou, sei bem das probabilidades ínfimas de receber uma resposta, um conselho ou alguma quebra de inércia de sua parte, mas ainda assim, tento como recurso improvável, mas existente. Pedi que deixassem esta carta no meio das tantas cartas de Dia dos Namorados na porta da livraria do shopping, na esperança de que você a leia e não a devolva (afinal, descobri que não sou o único a escrever cartas a desconhecidos, logo, há uma luz no fim do túnel).

Pense, se não como uma carta de amor, mas como uma questão de saúde privada. Afinal, não mexo meu lado esquerdo e bem... de gauche, basta Drummond.

No aguardo de uma resposta o mais breve possível. Esperançoso.

Alberto G.


D o m i n a t r i x



De novo. Aquela suadeira, o tremor no estômago, a vontade de colocar as tripas para fora e o remédio para dentro. Ele sabia que não seria fácil controlar. Não agora, depois de tanto tempo de tranquilidade, tempo que ele pensara se prolongar para a semente, ou ao menos por mais algumas semanas.

Não depois dela. 

Ela havia voltado. Não avisou ou pediu licença. Não fingiu meias verdades ou colocou panos quentes. Chegou como quem vendaveia, revirando tudo, inclusive o seu estômago. Trazia consigo o frio do suor pingante da cabeça, que descia pela espinha e findava acima do cóccix. Sentou-se na poltrona da sala, tomando conta do ambiente e fazendo-o achar que o local sempre fora dela. Sempre dela e de mais ninguém.

Ele não conseguiria mais segurar. Com a boca já inserida dentro do vaso, desobstruiu a garganta por cinco minutos, suficientes para dominar o ambiente com um odor ocre e cheio de medo. Não, ele não era forte como diziam, nem mesmo aguentava os trancos, como espalhavam. Seu signo não significava nada, a não ser que ele gostaria de não ter nascido nas férias e no horário de verão. Nenhum feliz aniversário de amigos ou festinhas na escola. Apenas a solidão estridente de um já compreendido fracasso.

Quando conseguiu respirar sem ânsia, botou a cápsula guela abaixo sem ajuda de água ou refrigerante. Pelo menos assim pretendia ter forças para olhá-la antes de sair.

Após o que diriam ser horas de relógio, ele a viu, ainda altiva, sentada na poltrona da sala e dominando o seu mundo particular. Sem dizer palavra, abriu a porta e se colocou para fora. Então, como se pensasse nisso pela primeira vez, tornou a voltar e encará-la, de fato. Com um gesto simples, convidou-a a ir consigo.

Dessa vez, sem vendavais, ela o acompanhou, fazendo-o tremular, mas resistir. Um passo de cada vez, pensou, olhando o celular e respondendo uma mensagem de alguém cujos sentimentos ele gostaria muito de corresponder. 

Um passo de cada vez. 

Ao entrar no elevador, sentiu-se comprimido pela presença dela, mas respirando fundo, apertou o botão do térreo. Era melhor tê-la por perto e sob controle do que, dominatrix que era, ocupando o seu sofá.


- Bia 


quinta-feira, 4 de maio de 2017

Charme Inglês



Eram aproximadamente cinco horas de uma tarde enfadonha, na qual tudo o que ela havia feito era tentar recuperar o irrecuperável. Eram consideráveis os volumes de romances que recebia cujos conteúdos ela não entendia como passavam pela triagem de seus superiores na editora, mas aquele em específico estava além de qualquer adjetivo negativo.

Uma história vazia, cheia de clichês mal utilizados e muito, muito sexo. Uma combinação bombástica e completamente estapafúrdia, mas ela nada podia fazer depois que o contrato já havia sido assinado entre o "escritor" e a editora. 

Aliás, havia algo que ela podia fazer. Morrer antes que houvesse a publicação, constando seu nome como revisora. Talvez até mesmo nos agradecimentos feitos pelo autor, olha que honra. Sim, ela queria morrer.

Tomou mais um gole do chá de erva doce e suspirou, estalando o pescoço. Levou as mãos à nuca,  de onde geralmente puxava alguns fios de cabelo, mas se lembrou que não havia mais cabelos para puxar. Direcionou os olhos para o espelho e viu a imagem de uma jovem magra, com olheiras e os cabelos raspados como os de quem inicia quimioterapia.

Ela realmente parecia que ia morrer.

Largou o laptop sobre a cama e foi até a janela. Fazia um frio cortante, mas ela vestia apenas uma blusa fina de algodão. Eram tão poucos os dias de frio no ano que ela se recusava a vestir casacos e cachecóis em casa. Gostava da sensação de ver o corpo se arrepiar, a ponto de a coluna doer. Deixou o vento frio balançar as cortinas e atingi-la com força. Todo o seu corpo estremeceu e ela sorriu pela primeira vez naquele dia tão entediante.

Permaneceu ali, sorrindo de olhos fechados por mais alguns instantes, até que num movimento abrupto, fechou a janela e se voltou para o interior do quarto. No exato momento em que ele chegava.

Davi.

- Ou você aprendeu a entrar sem fazer absolutamente nenhum tipo de barulho na tranca da porta, ou eu suponho ter deixado, por relapso, a porta aberta. Diga que foi a primeira opção...?

- A segunda. Eu não conseguiria abrir aquele cadeado sem que você percebesse. Nunca.

Ele se aproximou e lhe deu um beijo gelado no nariz, fazendo-a espirrar. Davi colocou o casaco metodicamente na maçaneta da porta e se sentou sobre a cama, olhando para o laptop.

- Pelo jeito, você recebeu um exemplar e tanto, dessa vez - ele falou, sorrindo de lado.
Não era apenas o nome que tinham em comum, mas Davi era incrível e absurdamente parecido com o seu homônimo camaleão do rock. Isso era o que havia feito com que ela o olhasse pela primeira vez, mas não com olhos de admiração. Ela odiava Bowie. Mas adorava Davi com todas as suas parcas forças, após uma tarde de trabalho inútil.

- Vai ser publicado de todo jeito, com ou sem a minha revisão - disse ela, sentando-se ao lado dele e pegando o laptop de volta - É daquele garoto que venceu o programa da tv. O "príncipe da MPB", como andam dizendo. Ele devia continuar cantando, ou seja lá o que ele faz. Qualquer coisa é melhor do que isso.

- Está com fome? Aposto que não comeu nada o dia inteiro. Você não pode viver de chá de erva doce.

- Não estou vivendo de chá - ela mentiu, sabendo que ele não acreditaria nela - Mas pode pedir uma comida chinesa. Com certeza vai animar o meu dia.

O delivery demorou três quartos de hora para chegar, tempo gasto com conversas, palpites de Davi sobre a obra inédita (ela devia continuar assim, será que ninguém percebia isso?!) e algumas trocas de carícias delicadas. Quando finalmente chegou, ambos devoraram os pedidos e depois se deixaram cair sobre o tapete da sala, ignorando as sobras de comida que se prendiam a ele.

Os olhos dela ardiam e sua coluna doía mais do que nunca.

Virando-se para o lado, ela encarou o perfil de Davi, que agora estava de olhos fechados. Ele era a reencarnação do Bowie, não havia outra explicação, apesar de eles terem estado concomitantemente vivos na terra durante vários anos, o que dificultava um pouco a teoria espírita. Talvez ele fosse um filho bastardo do artista, porque não? Ela ainda investigaria sobre isso.

Davi abriu os olhos e a encarou. Seus olhos eram ternos e cheios de alguma coisa que ela não conseguia decifrar, mas achava que era amor.

- Vou te deixar sozinha - ele disse, levantando-se lentamente, com um charme inglês que até ela precisava admitir ser considerável - A gente se vê amanhã? Isto é, se você não morrer antes, por causa dessa nova "tragédia".

- Se eu morrer, faça uma festa. Eu volto pra agradecer.

Ele sorriu aquele sorriso torto de novo e, afagando a nuca dela, despediu-se com um beijo na testa. Quem, em sã consciência e com a aparência de um dos maiores astros da música de todos os tempos, despedir-se-ia de alguém com um beijo na testa?

Ela o amava. Por mais louco que parecesse, ela o amava, sim.

*

A campainha tocou naquela noite, fazendo-a levantar da cama, surpresa. Não esperava que Davi voltasse, ele não costumava mudar de ideia. Quando abriu a porta, viu-a, parada com os olhos esmeralda penetrantes, a encará-la.

- Achei que você pudesse querer companhia.

Sem dizer nada, ela deixou que a jovem entrasse em seu apartamento. Sentou-se no sofá e deixou que ela desabotoasse a sua blusa de algodão e retirasse a sua calcinha. A última imagem que viu antes de fechar os olhos foi aquele par de olhos verdes, um com uma pupila maior que a outra, a observá-la antes de sumir no meio de suas pernas.

E, em sua mente, tocava, incessantemente, "Rebel, Rebel".

- Bia





sábado, 29 de abril de 2017

D e s c a r d i o p h o b i a


Ele se esticava pelo chão do quarto, ouvindo no mais alto volume The Piper at the Gates of Dawn. O disco de 67 era um de seus favoritos para noites como aquela. Sentia-se dentro de um filme de ficção científica em preto e branco, daqueles antigos e com efeitos pré-Mosca de Cronenberg. Uma verdadeira epifania acontecia dentro dele cada uma das vezes em que ouvia aqueles barulhinhos esquisitos de experimentação. 

A sua própria experimentação.

Levantando um pouco a cabeça, ele verificou a dobra interna do braço. O tubo estava relativamente estável, e o seu sangue fluía por ele como vinho fresco. O ruído de pequenas borbulhas o fazia sempre pensar se advinha do líquido em movimento ou de um dos barulhinhos do disco de vinil. Talvez fossem a mesma coisa.

Ele tornou a se deitar, esticando os braços ao lado do corpo, numa posição vitruviana. O efeito do açúcar branco passava, mas o do pequeno doce ainda estava ali. Não era mais possível ter certeza sobre a veracidade do mundo, sobre a existência de Deus ou da finitude do homem. Tudo estava, como no Mundo Invertido, reflexo do universo que se expandia ao redor daquele pequeno apartamento.

O teto girou. Girou. Girou. Um caleidoscópio de cores e formas mantinham-no concentrado, de olhos para cima, rindo como se estivesse de volta naquele campo de flores vermelhas. O campo onde conhecera pela primeira vez o Anjo Negro. Aquela cujas canções o embalaram durante toda a sua infância. Toda a sua vida adulta. No peito, um stacato sutil, e aos poucos ele sentia os pequenos pedaços de si fluindo pelos braços. Abraçando a eternidade da sua felicidade.

Um bip. No vinil? Não, aquele era o bip específico do final do experimento. O som que lhe dizia estar chegando ao fim o caminho rubro, o caminho para a salvação. Mais uma vez, ele levantou a cabeça, dessa vez demorando um pouco mais de tempo para conseguir enxergar o braço pálido e fluorescente. Estava mesmo brilhando assim? Ele achava que sim. O sangue parara de correr pelo tubo, deixando-o apenas corado com pequenas gotas vermelhas. Virando a cabeça para o outro lado do quarto, ele olhou para o vidro transparente em cima da mesinha de cabeceira, mesinha esta que mal aguentava o peso do recipiente e balançava ligeiramente, como se desafiasse a gravidade. Dentro do vidro, a última gota pingava. O vinho estava pronto, mais do que fresco. Borbulhante. Olhando-o bem, percebia agora que parecia mais uma sangria. O nome era, inclusive, muito mais apropriado.

Ele deixou o corpo afrouxar, a cabeça tornar a encostar no chão frio e fechou os olhos. Fogos de artifício brilharam à sua frente, coloridos, grandes e fortes, repletos de uma verdade sobre o universo. Eram supernovas! Ou talvez poeiras estelares, ele não sabia ao certo a diferença. Bowie devia saber.

A música na vitrola chegara ao fim, e então o silêncio. O experimento mais uma vez dera certo. Como médico e monstro de si mesmo, ele estava em paz. O vinho saíra de seu corpo e com ele
partes de seu coração. Pelos seus cálculos, precisos e objetivos, seriam necessárias apenas mais algumas sessões para que ele, finalmente, não ouvisse mais os barulhinhos dentro de si.


Fonte: tumblr
- Bia

quinta-feira, 20 de abril de 2017

ANKH (ou Vida Eterna) - pt 2



19 horas. Ele sabia, porque as duas jovens, aparentemente estudantes de Moda (ele supunha pelas vestimentas propositalmente estapafúrdias) acabavam de descer do ônibus no ponto em frente ao local onde ele se sentava. Sempre atrasadas. Sempre lindas.


Ele permanecera mais do que o normal na casa da Baby. Costumava entrar, trepar, cheirar e sair. Mas não havia trepado, nem cheirado. Ela estava numa letargia tão grande, tão anormalmente chapada, que ele precisara cuidar dela, ou correria o risco de na próxima vez encontrá-la morta. Aquilo durara mais do que ele pretendia ou gostaria, mas eram quase quinze para as sete quando conseguiu colocá-la para dormir, prometendo que voltaria no dia seguinte para vê-la novamente.


Por pouco não perdeu as estudantes de vista. Mal teve tempo de fumar os sete, às vezes oito, cigarros que costumava enquanto as esperava descer do ônibus, toda segunda-feira. Naquela noite em especial, elas estavam anormalmente caladas. Uma delas colocava as mãos no ombro da outra (a mais baixa), como se a consolasse. Ele observava, sentado em uma das bolas de concreto abaixo do Viaduto Santa Tereza, enquanto elas passavam a uns cinquenta metros de distância. Então, elas pararam. A mais baixa pareceu discordar do que a outra dizia, e elas trocaram palavras rudes. A mais alta, exasperada, fez um aceno com as mãos e saiu andando na direção em que sempre ia após descer do ônibus.


A mais baixa permaneceu ali, como se algo segurasse seus pés no chão, impedindo-a de se movimentar. Ele pensou em se aproximar, perguntar se ela estava bem, mas só o que fez foi puxar ainda mais para cima a gola de seu sobretudo, tapando-lhe o que restava de visível da pele de seu pescoço. Acendeu um cigarro, tragando-o tão forte que um bom pedaço se consumira.


Alguns minutos se passaram, então a garota recomeçou a andar, mas na direção contrária à da amiga. Seus passos eram rápidos e ela parecia fungar, como se chorasse contida.


Aquela mudança no trajeto rotineiro fez com que ele se levantasse e, pela primeira vez, a seguisse. As ruas estavam desertas, nem mesmo muitos carros passavam àquela hora. Ele sabia o porquê. As luzes de Natal na Praça da Liberdade acabavam de ser inauguradas, concentrando todo o fluxo do trânsito do outro lado da cidade.


A garota andava rápido, mas ele se mantinha a uma boa distância. Não queria que ela se assustasse ou gritasse. Depois de dobrar uma ou duas esquinas, ela entrou na rua que mais adiante, desembocaria no beco de Baby. Ele recuou ainda mais os passos, andando o mais lento que pode. A jovem fez menção de olhar para trás, fazendo com que o sangue dele gelasse, mas o movimento ficou interrompido, e ela apenas virou mais uma esquina.


Apressando o passo, ele alcançou a esquina em poucos segundos, virando nela também. Estacou. A rua fina se estendia longa e reta à sua frente, mas não havia nem sinal da garota.


Droga, pensou.


Súbito, ele sentiu seu corpo paralisar, como se uma centena de formigas o estivessem mordendo. A respiração ofegante, retumbando em seus ouvidos, fez com que ele demorasse a perceber a aproximação de alguém, que ficou fora do seu campo de visão. Então, ele a viu. Pequena e linda, a jovem o analisava com olhos curiosos. Ele queria lhe dizer que não a estava seguindo para lhe causar mal, apenas se preocupara com o fato de ela ter se desviado do caminho corriqueiro, algo que nem ele sabia se fazia sentido. Mas as palavras não conseguiam sair de sua boca. Era como se todo o seu corpo não mais o obedecesse. Ele estava duro como pedra, e sem poder se expressar. Como pedra.


Os olhos dela fixaram-se nos dele por míseros instantes, mas foram o suficiente para ele perceber que havia algo de diferente neles. Com um movimento ágil, ela abriu
o casaco dele, revelando o seu corpo magro e repleto de manchas brancas. Ela se espantou, mas a reação durou menos tempo do que era possível contar. Com mais agilidade, ela desabotoou as calças dele, desceu a cueca um palmo, e pegou em seu pênis. Puxando de dentro das próprias vestes, ela pegou um pingente em formato de Ankh (a cruz egípcia, ele sabia) e dividindo-o em dois, revelou a existência de um pequeno punhal.


Ele sentiu um arrepio alucinante percorrer todo o seu corpo quando ela abaixou o seu pênis, cobrindo-o parcialmente com a cueca, e penetrou a ponta do punhal na emenda entre o seu pênis e a parte inferior da barriga. O calor do sangue logo deu lugar a uma dor excruciante, mas antes que ele pudesse se dar conta de tudo o que acontecia, sentiu a boca dela se dirigir ao local do machucado, chupando-lhe o sangue que escorria com vontade.


Mesmo paralisado, ele conseguiu sentir um misto de prazer e agonia enquanto ela lhe chupava o sangue, ali no meio da rua. Entretanto, em questão de segundos, a sua paralisia foi dando lugar a uma bambeza, e ele sentiu que seu corpo caía, apesar de a garota não parecer se importar. Como numa plantação que recorre à irrigação vinda do rio mais próximo, ele sentiu que todo o líquido do seu corpo estava sendo drenado pela boca dela, como que para alimentá-la e fazê-lo perecer.


Permaneceu ali, impotente, por sabe-se mais quanto tempo, sentindo-se esvair para o corpo daquela menina que deveria ter quase dez anos a menos que ele. Ou talvez isso fosse apenas mais um dos equívocos referentes a ela.


Borrão. Preto. Luz. O poste jogava em seu rosto raios amarelos que o cegavam tanto quanto o sol. Ouviu a garota se levantar e, no momento em que ela se aproximou de seu rosto, por cima do corpo, tudo tornou a ficar preto com o bloqueio da luminosidade.


Ela lhe dera um beijo demorado e viscoso. Com delicadeza, subiu a calça dele e fechou o casaco, deixando, contudo, seu pescoço à mostra, bem como o fino cordão de ouro branco. Antes de sair, ele a ouviu murmurar:


- Você não precisa mais se preocupar com essas manchas no sol.


O barulho dos sapatos dela foi se afastando e com eles a paralisia no corpo do homem. Apesar disso, ele não conseguia se mexer. Um carro passou, mas não parou. Depois mais outro. Ele teve a sensação de ouvir ao longe um grito exasperado de mulher, e uma voz dizendo “o que você fez?!”.


A voz se dissolveu como um eco, e ele não sabia, tampouco, dizer o que aquela linda garota havia feito. Ou o que ela era. Só o que podia afirmar era que não visitaria Baby na manhã seguinte.


Deixando os olhos se fecharem, o último pensamento que ele teve foi o de que o obelisco da praça sete se tornara, realmente, obsoleto.

- Bia
imagem: Mariela Guimarães - O Tempo