19 horas. Ele sabia, porque as duas jovens, aparentemente estudantes de Moda (ele supunha pelas vestimentas propositalmente estapafúrdias) acabavam de descer do ônibus no ponto em frente ao local onde ele se sentava. Sempre atrasadas. Sempre lindas.
Ele permanecera mais do que o normal na casa da Baby. Costumava entrar, trepar, cheirar e sair. Mas não havia trepado, nem cheirado. Ela estava numa letargia tão grande, tão anormalmente chapada, que ele precisara cuidar dela, ou correria o risco de na próxima vez encontrá-la morta. Aquilo durara mais do que ele pretendia ou gostaria, mas eram quase quinze para as sete quando conseguiu colocá-la para dormir, prometendo que voltaria no dia seguinte para vê-la novamente.
Por pouco não perdeu as estudantes de vista. Mal teve tempo de fumar os sete, às vezes oito, cigarros que costumava enquanto as esperava descer do ônibus, toda segunda-feira. Naquela noite em especial, elas estavam anormalmente caladas. Uma delas colocava as mãos no ombro da outra (a mais baixa), como se a consolasse. Ele observava, sentado em uma das bolas de concreto abaixo do Viaduto Santa Tereza, enquanto elas passavam a uns cinquenta metros de distância. Então, elas pararam. A mais baixa pareceu discordar do que a outra dizia, e elas trocaram palavras rudes. A mais alta, exasperada, fez um aceno com as mãos e saiu andando na direção em que sempre ia após descer do ônibus.
A mais baixa permaneceu ali, como se algo segurasse seus pés no chão, impedindo-a de se movimentar. Ele pensou em se aproximar, perguntar se ela estava bem, mas só o que fez foi puxar ainda mais para cima a gola de seu sobretudo, tapando-lhe o que restava de visível da pele de seu pescoço. Acendeu um cigarro, tragando-o tão forte que um bom pedaço se consumira.
Alguns minutos se passaram, então a garota recomeçou a andar, mas na direção contrária à da amiga. Seus passos eram rápidos e ela parecia fungar, como se chorasse contida.
Aquela mudança no trajeto rotineiro fez com que ele se levantasse e, pela primeira vez, a seguisse. As ruas estavam desertas, nem mesmo muitos carros passavam àquela hora. Ele sabia o porquê. As luzes de Natal na Praça da Liberdade acabavam de ser inauguradas, concentrando todo o fluxo do trânsito do outro lado da cidade.
A garota andava rápido, mas ele se mantinha a uma boa distância. Não queria que ela se assustasse ou gritasse. Depois de dobrar uma ou duas esquinas, ela entrou na rua que mais adiante, desembocaria no beco de Baby. Ele recuou ainda mais os passos, andando o mais lento que pode. A jovem fez menção de olhar para trás, fazendo com que o sangue dele gelasse, mas o movimento ficou interrompido, e ela apenas virou mais uma esquina.
Apressando o passo, ele alcançou a esquina em poucos segundos, virando nela também. Estacou. A rua fina se estendia longa e reta à sua frente, mas não havia nem sinal da garota.
Droga, pensou.
Súbito, ele sentiu seu corpo paralisar, como se uma centena de formigas o estivessem mordendo. A respiração ofegante, retumbando em seus ouvidos, fez com que ele demorasse a perceber a aproximação de alguém, que ficou fora do seu campo de visão. Então, ele a viu. Pequena e linda, a jovem o analisava com olhos curiosos. Ele queria lhe dizer que não a estava seguindo para lhe causar mal, apenas se preocupara com o fato de ela ter se desviado do caminho corriqueiro, algo que nem ele sabia se fazia sentido. Mas as palavras não conseguiam sair de sua boca. Era como se todo o seu corpo não mais o obedecesse. Ele estava duro como pedra, e sem poder se expressar. Como pedra.
Os olhos dela fixaram-se nos dele por míseros instantes, mas foram o suficiente para ele perceber que havia algo de diferente neles. Com um movimento ágil, ela abriu
o casaco dele, revelando o seu corpo magro e repleto de manchas brancas. Ela se espantou, mas a reação durou menos tempo do que era possível contar. Com mais agilidade, ela desabotoou as calças dele, desceu a cueca um palmo, e pegou em seu pênis. Puxando de dentro das próprias vestes, ela pegou um pingente em formato de Ankh (a cruz egípcia, ele sabia) e dividindo-o em dois, revelou a existência de um pequeno punhal.
Ele sentiu um arrepio alucinante percorrer todo o seu corpo quando ela abaixou o seu pênis, cobrindo-o parcialmente com a cueca, e penetrou a ponta do punhal na emenda entre o seu pênis e a parte inferior da barriga. O calor do sangue logo deu lugar a uma dor excruciante, mas antes que ele pudesse se dar conta de tudo o que acontecia, sentiu a boca dela se dirigir ao local do machucado, chupando-lhe o sangue que escorria com vontade.
Mesmo paralisado, ele conseguiu sentir um misto de prazer e agonia enquanto ela lhe chupava o sangue, ali no meio da rua. Entretanto, em questão de segundos, a sua paralisia foi dando lugar a uma bambeza, e ele sentiu que seu corpo caía, apesar de a garota não parecer se importar. Como numa plantação que recorre à irrigação vinda do rio mais próximo, ele sentiu que todo o líquido do seu corpo estava sendo drenado pela boca dela, como que para alimentá-la e fazê-lo perecer.
Permaneceu ali, impotente, por sabe-se mais quanto tempo, sentindo-se esvair para o corpo daquela menina que deveria ter quase dez anos a menos que ele. Ou talvez isso fosse apenas mais um dos equívocos referentes a ela.
Borrão. Preto. Luz. O poste jogava em seu rosto raios amarelos que o cegavam tanto quanto o sol. Ouviu a garota se levantar e, no momento em que ela se aproximou de seu rosto, por cima do corpo, tudo tornou a ficar preto com o bloqueio da luminosidade.
Ela lhe dera um beijo demorado e viscoso. Com delicadeza, subiu a calça dele e fechou o casaco, deixando, contudo, seu pescoço à mostra, bem como o fino cordão de ouro branco. Antes de sair, ele a ouviu murmurar:
- Você não precisa mais se preocupar com essas manchas no sol.
O barulho dos sapatos dela foi se afastando e com eles a paralisia no corpo do homem. Apesar disso, ele não conseguia se mexer. Um carro passou, mas não parou. Depois mais outro. Ele teve a sensação de ouvir ao longe um grito exasperado de mulher, e uma voz dizendo “o que você fez?!”.
Deixando os olhos se fecharem, o último pensamento que ele teve foi o de que o obelisco da praça sete se tornara, realmente, obsoleto.
- Bia
Nenhum comentário:
Postar um comentário