Essa compulsão por cigarros ainda o mataria. Começara como um simples passatempo, depois se tornara um vício, e agora mais da metade do dinheiro que conseguia ia parar direto naqueles maços de cigarros baratos. Era uma maldição.
Fazia frio naquela tarde de terça feira, e ele estava contente por poder usar o seu sobretudo. Há mais de um mês Belo Horizonte vinha sendo assolada por um calor desproporcional até mesmo para seus parâmetros, e ele odiava o calor. Ter que expor a sua pele sensível ao sol, ao mormaço, ao olhar curioso das pessoas não o agradava em nada. Naquela tarde, contudo, ele se sentia confortável. Era invisível no meio das demais pessoas, apenas mais um transeunte se escondendo da fina chuva debaixo das marquises.
Apagando o cigarro no topo da lixeira mais próxima e jogando-o fora em sequência, ele parou de andar, olhando para o obelisco sem realmente o ver. Agora, já não mais se importava com ele, de fato, apenas o olhava por mero reflexo. Todos os dias, naquele mesmo horário, ele parava no sinal de pedestres, aguardando a cor verde para atravessar o cruzamento abalroado de pessoas no hiper-centro da cidade. E lá estava ele, o grande obelisco, carinhosamente chamado por muitos de pirulito. Desde que viera morar na capital, aquele monumento sempre o instigara. Era símbolo de cartões postais, plantado ostensivamente no meio da praça mais famosa de Belo Horizonte, na interseção entre a Afonso Pena e a Amazonas. Uma “praça”, que na verdade era apenas o entroncamento entre várias ruas, todas elas culminando naquele grande e másculo obelisco.
A primeira vez que o viu (agora, pensando bem, ele achava sem graça e desimportante), um pensamento ligeiramente sórdido lhe passou pela cabeça. O formato comprido e longilíneo, o apelido dos moradores da capital, tudo o faziam lembrar um falo. Talvez fosse a influência inconsciente da psicanálise em sua vida. Influência mínima, era verdade, mas que não deixava de existir, em especial naquela época. E aquele pirulito o fizera brincar com o próprio membro durante dias seguidos, imaginando-se ali, grandioso no meio da praça, todos os olhos se voltando para ele. Hoje, tempos após largar a faculdade de medicina, esses pensamentos eram apenas memórias fracas e obscurecidas pelo tempo e por certo ganho de maturidade.
O sinal de pedestres ficou verde, desviando automaticamente a sua atenção do obelisco, e ele atravessou de um lado ao outro da Praça Sete de Setembro. Em frente ao Cine Teatro Brasil havia dois músicos com roupas típicas indígenas que apresentavam suas composições. Ele passou por eles sem lhes dar muita atenção.
Não estava com pressa, mas também não andava a passos lentos. Preferia caminhar de maneira compassada e fluida, evitando que pivetes eventuais se aproveitassem de sua aparente distração. Esse pensamento o fez levar instintivamente as mãos à gola do sobretudo, puxando-a para cobrir o pescoço. Ele não possuía muitas coisas de valor, mas sempre andava com um cordão fino de ouro branco. Lembrança de um tempo longínquo em São João Del Rei.
Alguns minutos de caminhada e ele chegava ao início do Viaduto Santa Tereza. O trânsito começava a se intensificar com o cair do dia, e ele se dava por satisfeito de fazer todo o seu trajeto a pé. Atravessou a rua, seguindo pelo passeio que rodeava o Parque Municipal e desceu a rua, avistando lateralmente o viaduto crescer sobre ele à medida em que rumava para baixo.
O vento agora estava mais forte, e ele sentia seu rosto se contrair. Sua pele, tão sensível ao calor, parecia também protestar contra aquele vento cortante e cada vez mais incômodo. Tentando se proteger, ele colocou os braços à frente do rosto, sem que isso o impedisse de ver o caminho que se estendia à frente. Apesar de ele o conhecer de cor e salteado, não queria correr o risco de tropeçar naquele calçamento mal feito e ir de boca no chão. Sua pele agradecia.
Depois do que lhe pareceram 15 minutos, ele estava numa rua vazia, beirando a trilha antiga do metrô. Era possível ouvir o barulho dos vagões em movimento por sobre o muro pixado e imundo. Ele prosseguiu por mais alguns metros, virando num pequeno beco.
O ambiente cheirava a mofo e urina, um cheiro ainda mais forte do que o do muro por onde ele passara. Restos de um colchão queimado podiam ser vistos no chão, bem como latas de cerveja pisadas e guimbas de cigarro, muitas delas marcadas de batom. Uma barata cascuda passara por cima de seu All Star surrado, mas ele não percebeu. Olhando de um lado para o outro, ele bateu na porta descascada à sua frente.
Ouviu-se um barulho de cachorro latindo, e alguns minutos depois, o tilintar de uma corrente sendo desfeita. A porta se abriu, revelando uma jovem de vinte e poucos anos que, a despeito do frio, vestia apenas uma camiseta branca sem sutiã e um short jeans que mais parecia uma calcinha.
- Chegou mais tarde, hoje – ela disse, encarando-o. Sua voz era sonolenta, e ela aparentava estar dormindo antes de ele chegar.
- Trânsito – ele disse, com um meio sorriso.
A jovem abriu caminho para ele que, com mais uma olhada ao redor, entrou.
(continua...)
- Bia
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