sábado, 29 de abril de 2017

D e s c a r d i o p h o b i a


Ele se esticava pelo chão do quarto, ouvindo no mais alto volume The Piper at the Gates of Dawn. O disco de 67 era um de seus favoritos para noites como aquela. Sentia-se dentro de um filme de ficção científica em preto e branco, daqueles antigos e com efeitos pré-Mosca de Cronenberg. Uma verdadeira epifania acontecia dentro dele cada uma das vezes em que ouvia aqueles barulhinhos esquisitos de experimentação. 

A sua própria experimentação.

Levantando um pouco a cabeça, ele verificou a dobra interna do braço. O tubo estava relativamente estável, e o seu sangue fluía por ele como vinho fresco. O ruído de pequenas borbulhas o fazia sempre pensar se advinha do líquido em movimento ou de um dos barulhinhos do disco de vinil. Talvez fossem a mesma coisa.

Ele tornou a se deitar, esticando os braços ao lado do corpo, numa posição vitruviana. O efeito do açúcar branco passava, mas o do pequeno doce ainda estava ali. Não era mais possível ter certeza sobre a veracidade do mundo, sobre a existência de Deus ou da finitude do homem. Tudo estava, como no Mundo Invertido, reflexo do universo que se expandia ao redor daquele pequeno apartamento.

O teto girou. Girou. Girou. Um caleidoscópio de cores e formas mantinham-no concentrado, de olhos para cima, rindo como se estivesse de volta naquele campo de flores vermelhas. O campo onde conhecera pela primeira vez o Anjo Negro. Aquela cujas canções o embalaram durante toda a sua infância. Toda a sua vida adulta. No peito, um stacato sutil, e aos poucos ele sentia os pequenos pedaços de si fluindo pelos braços. Abraçando a eternidade da sua felicidade.

Um bip. No vinil? Não, aquele era o bip específico do final do experimento. O som que lhe dizia estar chegando ao fim o caminho rubro, o caminho para a salvação. Mais uma vez, ele levantou a cabeça, dessa vez demorando um pouco mais de tempo para conseguir enxergar o braço pálido e fluorescente. Estava mesmo brilhando assim? Ele achava que sim. O sangue parara de correr pelo tubo, deixando-o apenas corado com pequenas gotas vermelhas. Virando a cabeça para o outro lado do quarto, ele olhou para o vidro transparente em cima da mesinha de cabeceira, mesinha esta que mal aguentava o peso do recipiente e balançava ligeiramente, como se desafiasse a gravidade. Dentro do vidro, a última gota pingava. O vinho estava pronto, mais do que fresco. Borbulhante. Olhando-o bem, percebia agora que parecia mais uma sangria. O nome era, inclusive, muito mais apropriado.

Ele deixou o corpo afrouxar, a cabeça tornar a encostar no chão frio e fechou os olhos. Fogos de artifício brilharam à sua frente, coloridos, grandes e fortes, repletos de uma verdade sobre o universo. Eram supernovas! Ou talvez poeiras estelares, ele não sabia ao certo a diferença. Bowie devia saber.

A música na vitrola chegara ao fim, e então o silêncio. O experimento mais uma vez dera certo. Como médico e monstro de si mesmo, ele estava em paz. O vinho saíra de seu corpo e com ele
partes de seu coração. Pelos seus cálculos, precisos e objetivos, seriam necessárias apenas mais algumas sessões para que ele, finalmente, não ouvisse mais os barulhinhos dentro de si.


Fonte: tumblr
- Bia

quinta-feira, 20 de abril de 2017

ANKH (ou Vida Eterna) - pt 2



19 horas. Ele sabia, porque as duas jovens, aparentemente estudantes de Moda (ele supunha pelas vestimentas propositalmente estapafúrdias) acabavam de descer do ônibus no ponto em frente ao local onde ele se sentava. Sempre atrasadas. Sempre lindas.


Ele permanecera mais do que o normal na casa da Baby. Costumava entrar, trepar, cheirar e sair. Mas não havia trepado, nem cheirado. Ela estava numa letargia tão grande, tão anormalmente chapada, que ele precisara cuidar dela, ou correria o risco de na próxima vez encontrá-la morta. Aquilo durara mais do que ele pretendia ou gostaria, mas eram quase quinze para as sete quando conseguiu colocá-la para dormir, prometendo que voltaria no dia seguinte para vê-la novamente.


Por pouco não perdeu as estudantes de vista. Mal teve tempo de fumar os sete, às vezes oito, cigarros que costumava enquanto as esperava descer do ônibus, toda segunda-feira. Naquela noite em especial, elas estavam anormalmente caladas. Uma delas colocava as mãos no ombro da outra (a mais baixa), como se a consolasse. Ele observava, sentado em uma das bolas de concreto abaixo do Viaduto Santa Tereza, enquanto elas passavam a uns cinquenta metros de distância. Então, elas pararam. A mais baixa pareceu discordar do que a outra dizia, e elas trocaram palavras rudes. A mais alta, exasperada, fez um aceno com as mãos e saiu andando na direção em que sempre ia após descer do ônibus.


A mais baixa permaneceu ali, como se algo segurasse seus pés no chão, impedindo-a de se movimentar. Ele pensou em se aproximar, perguntar se ela estava bem, mas só o que fez foi puxar ainda mais para cima a gola de seu sobretudo, tapando-lhe o que restava de visível da pele de seu pescoço. Acendeu um cigarro, tragando-o tão forte que um bom pedaço se consumira.


Alguns minutos se passaram, então a garota recomeçou a andar, mas na direção contrária à da amiga. Seus passos eram rápidos e ela parecia fungar, como se chorasse contida.


Aquela mudança no trajeto rotineiro fez com que ele se levantasse e, pela primeira vez, a seguisse. As ruas estavam desertas, nem mesmo muitos carros passavam àquela hora. Ele sabia o porquê. As luzes de Natal na Praça da Liberdade acabavam de ser inauguradas, concentrando todo o fluxo do trânsito do outro lado da cidade.


A garota andava rápido, mas ele se mantinha a uma boa distância. Não queria que ela se assustasse ou gritasse. Depois de dobrar uma ou duas esquinas, ela entrou na rua que mais adiante, desembocaria no beco de Baby. Ele recuou ainda mais os passos, andando o mais lento que pode. A jovem fez menção de olhar para trás, fazendo com que o sangue dele gelasse, mas o movimento ficou interrompido, e ela apenas virou mais uma esquina.


Apressando o passo, ele alcançou a esquina em poucos segundos, virando nela também. Estacou. A rua fina se estendia longa e reta à sua frente, mas não havia nem sinal da garota.


Droga, pensou.


Súbito, ele sentiu seu corpo paralisar, como se uma centena de formigas o estivessem mordendo. A respiração ofegante, retumbando em seus ouvidos, fez com que ele demorasse a perceber a aproximação de alguém, que ficou fora do seu campo de visão. Então, ele a viu. Pequena e linda, a jovem o analisava com olhos curiosos. Ele queria lhe dizer que não a estava seguindo para lhe causar mal, apenas se preocupara com o fato de ela ter se desviado do caminho corriqueiro, algo que nem ele sabia se fazia sentido. Mas as palavras não conseguiam sair de sua boca. Era como se todo o seu corpo não mais o obedecesse. Ele estava duro como pedra, e sem poder se expressar. Como pedra.


Os olhos dela fixaram-se nos dele por míseros instantes, mas foram o suficiente para ele perceber que havia algo de diferente neles. Com um movimento ágil, ela abriu
o casaco dele, revelando o seu corpo magro e repleto de manchas brancas. Ela se espantou, mas a reação durou menos tempo do que era possível contar. Com mais agilidade, ela desabotoou as calças dele, desceu a cueca um palmo, e pegou em seu pênis. Puxando de dentro das próprias vestes, ela pegou um pingente em formato de Ankh (a cruz egípcia, ele sabia) e dividindo-o em dois, revelou a existência de um pequeno punhal.


Ele sentiu um arrepio alucinante percorrer todo o seu corpo quando ela abaixou o seu pênis, cobrindo-o parcialmente com a cueca, e penetrou a ponta do punhal na emenda entre o seu pênis e a parte inferior da barriga. O calor do sangue logo deu lugar a uma dor excruciante, mas antes que ele pudesse se dar conta de tudo o que acontecia, sentiu a boca dela se dirigir ao local do machucado, chupando-lhe o sangue que escorria com vontade.


Mesmo paralisado, ele conseguiu sentir um misto de prazer e agonia enquanto ela lhe chupava o sangue, ali no meio da rua. Entretanto, em questão de segundos, a sua paralisia foi dando lugar a uma bambeza, e ele sentiu que seu corpo caía, apesar de a garota não parecer se importar. Como numa plantação que recorre à irrigação vinda do rio mais próximo, ele sentiu que todo o líquido do seu corpo estava sendo drenado pela boca dela, como que para alimentá-la e fazê-lo perecer.


Permaneceu ali, impotente, por sabe-se mais quanto tempo, sentindo-se esvair para o corpo daquela menina que deveria ter quase dez anos a menos que ele. Ou talvez isso fosse apenas mais um dos equívocos referentes a ela.


Borrão. Preto. Luz. O poste jogava em seu rosto raios amarelos que o cegavam tanto quanto o sol. Ouviu a garota se levantar e, no momento em que ela se aproximou de seu rosto, por cima do corpo, tudo tornou a ficar preto com o bloqueio da luminosidade.


Ela lhe dera um beijo demorado e viscoso. Com delicadeza, subiu a calça dele e fechou o casaco, deixando, contudo, seu pescoço à mostra, bem como o fino cordão de ouro branco. Antes de sair, ele a ouviu murmurar:


- Você não precisa mais se preocupar com essas manchas no sol.


O barulho dos sapatos dela foi se afastando e com eles a paralisia no corpo do homem. Apesar disso, ele não conseguia se mexer. Um carro passou, mas não parou. Depois mais outro. Ele teve a sensação de ouvir ao longe um grito exasperado de mulher, e uma voz dizendo “o que você fez?!”.


A voz se dissolveu como um eco, e ele não sabia, tampouco, dizer o que aquela linda garota havia feito. Ou o que ela era. Só o que podia afirmar era que não visitaria Baby na manhã seguinte.


Deixando os olhos se fecharem, o último pensamento que ele teve foi o de que o obelisco da praça sete se tornara, realmente, obsoleto.

- Bia
imagem: Mariela Guimarães - O Tempo

quarta-feira, 19 de abril de 2017

ANKH (ou Vida Eterna) - pt 1



Essa compulsão por cigarros ainda o mataria. Começara como um simples passatempo, depois se tornara um vício, e agora mais da metade do dinheiro que conseguia ia parar direto naqueles maços de cigarros baratos. Era uma maldição.


Fazia frio naquela tarde de terça feira, e ele estava contente por poder usar o seu sobretudo. Há mais de um mês Belo Horizonte vinha sendo assolada por um calor desproporcional até mesmo para seus parâmetros, e ele odiava o calor. Ter que expor a sua pele sensível ao sol, ao mormaço, ao olhar curioso das pessoas não o agradava em nada. Naquela tarde, contudo, ele se sentia confortável. Era invisível no meio das demais pessoas, apenas mais um transeunte se escondendo da fina chuva debaixo das marquises.


Apagando o cigarro no topo da lixeira mais próxima e jogando-o fora em sequência, ele parou de andar, olhando para o obelisco sem realmente o ver. Agora, já não mais se importava com ele, de fato, apenas o olhava por mero reflexo. Todos os dias, naquele mesmo horário, ele parava no sinal de pedestres, aguardando a cor verde para atravessar o cruzamento abalroado de pessoas no hiper-centro da cidade. E lá estava ele, o grande obelisco, carinhosamente chamado por muitos de pirulito. Desde que viera morar na capital, aquele monumento sempre o instigara. Era símbolo de cartões postais, plantado ostensivamente no meio da praça mais famosa de Belo Horizonte, na interseção entre a Afonso Pena e a Amazonas. Uma “praça”, que na verdade era apenas o entroncamento entre várias ruas, todas elas culminando naquele grande e másculo obelisco.


A primeira vez que o viu (agora, pensando bem, ele achava sem graça e desimportante), um pensamento ligeiramente sórdido lhe passou pela cabeça. O formato comprido e longilíneo, o apelido dos moradores da capital, tudo o faziam lembrar um falo. Talvez fosse a influência inconsciente da psicanálise em sua vida. Influência mínima, era verdade, mas que não deixava de existir, em especial naquela época. E aquele pirulito o fizera brincar com o próprio membro durante dias seguidos, imaginando-se ali, grandioso no meio da praça, todos os olhos se voltando para ele. Hoje, tempos após largar a faculdade de medicina, esses pensamentos eram apenas memórias fracas e obscurecidas pelo tempo e por certo ganho de maturidade.


O sinal de pedestres ficou verde, desviando automaticamente a sua atenção do obelisco, e ele atravessou de um lado ao outro da Praça Sete de Setembro. Em frente ao Cine Teatro Brasil havia dois músicos com roupas típicas indígenas que apresentavam suas composições. Ele passou por eles sem lhes dar muita atenção.


Não estava com pressa, mas também não andava a passos lentos. Preferia caminhar de maneira compassada e fluida, evitando que pivetes eventuais se aproveitassem de sua aparente distração. Esse pensamento o fez levar instintivamente as mãos à gola do sobretudo, puxando-a para cobrir o pescoço. Ele não possuía muitas coisas de valor, mas sempre andava com um cordão fino de ouro branco. Lembrança de um tempo longínquo em São João Del Rei.


Alguns minutos de caminhada e ele chegava ao início do Viaduto Santa Tereza. O trânsito começava a se intensificar com o cair do dia, e ele se dava por satisfeito de fazer todo o seu trajeto a pé. Atravessou a rua, seguindo pelo passeio que rodeava o Parque Municipal e desceu a rua, avistando lateralmente o viaduto crescer sobre ele à medida em que rumava para baixo.


O vento agora estava mais forte, e ele sentia seu rosto se contrair. Sua pele, tão sensível ao calor, parecia também protestar contra aquele vento cortante e cada vez mais incômodo. Tentando se proteger, ele colocou os braços à frente do rosto, sem que isso o impedisse de ver o caminho que se estendia à frente. Apesar de ele o conhecer de cor e salteado, não queria correr o risco de tropeçar naquele calçamento mal feito e ir de boca no chão. Sua pele agradecia.


Depois do que lhe pareceram 15 minutos, ele estava numa rua vazia, beirando a trilha antiga do metrô. Era possível ouvir o barulho dos vagões em movimento por sobre o muro pixado e imundo. Ele prosseguiu por mais alguns metros, virando num pequeno beco.


O ambiente cheirava a mofo e urina, um cheiro ainda mais forte do que o do muro por onde ele passara. Restos de um colchão queimado podiam ser vistos no chão, bem como latas de cerveja pisadas e guimbas de cigarro, muitas delas marcadas de batom. Uma barata cascuda passara por cima de seu All Star surrado, mas ele não percebeu. Olhando de um lado para o outro, ele bateu na porta descascada à sua frente.


Ouviu-se um barulho de cachorro latindo, e alguns minutos depois, o tilintar de uma corrente sendo desfeita. A porta se abriu, revelando uma jovem de vinte e poucos anos que, a despeito do frio, vestia apenas uma camiseta branca sem sutiã e um short jeans que mais parecia uma calcinha.

- Chegou mais tarde, hoje – ela disse, encarando-o. Sua voz era sonolenta, e ela aparentava estar dormindo antes de ele chegar.


- Trânsito – ele disse, com um meio sorriso.


A jovem abriu caminho para ele que, com mais uma olhada ao redor, entrou.

(continua...)


- Bia