sábado, 24 de novembro de 2018

Um aroma de rosa




Ainda não era noite e Pedro já não via a hora de chegar em casa e dormir. Saíra para trabalhar pela manhã após uma noite mal dormida e tinha a sensação de que seus olhos tinham sido lavados com areia.

O ônibus sacolejava pelos buracos do subúrbio da capital e o movimento o embalava. Por vezes, se pegou pendendo o pescoço para a lateral do corpo, pedindo desculpas para o passageiro ao lado pelo incômodo de ter uma cabeça em seu ombro sem o consentimento. 

O ônibus, agora, já mais vazio, se encaminhava para os últimos pontos e ele se sentia impelido a ficar animado. Mais alguns quarteirões e poderia, finalmente, descansar.

Uma freada brusca o tirou de seus devaneios e o jogou contra a poltrona da frente. Por pouco sua boca não ia de encontro ao encosto duro e gasto, o que não seria nenhum pouco agradável. Ele engoliu um palavrão contra a motorista - Rose -, pois sabia o quão boa e responsável profissional ela era. Quase nunca a vira trocar uma marcha sequer de maneira abrupta.

A porta se abriu e um homenzinho magro e com aparência decrépita entrou, passando o cartão no sensor. Pedro engasgou com a própria saliva quando o ônibus arrancou e o homem passou a catraca, mas notou que ele usava um fone de ouvido com a corda rosa pendurado apenas numa orelha, muito chamativo para a sua aparência tão encolhida. Normalmente, Pedro lhe desejaria uma boa noite, mas estava muito cansado para expressar qualquer coisa verbalmente.

Prosseguiram viagem e as duas últimas pessoas que haviam antes do homenzinho entrar no ônibus desceram, sobrando apenas ele e Pedro. Este último gostava da sensação de viajar só. Era como se tivesse o ônibus apenas para si, uma regalia estranha da vida de trabalhador.

O ponto em que Pedro descia se aproximou e ele deu o sinal. Rose diminuiu a velocidade e, antes de descer, ele se despediu:

- Até segunda, Rose!

- Juízo, meu filho! - ela disse, já fechando as portas.

Pedro esperou que o ônibus saísse e viu o homenzinho ser o único passageiro restante.

Do ponto até sua casa eram apenas dois quarteirões de descida, então Pedro os percorreu rapidamente. Morava em uma casa pequena, quase na esquina com uma grande avenida, um local tranquilo e sem o movimento contínuo de carros do centro da cidade.

Ele abriu o portão, brincou com Zeus, seu filhote de vira-lata recém adotado, e passou pela porta da cozinha. Não precisou de mais do que uma olhada para saber que havia algo errado.

Aparentemente, tudo estava no lugar, mas havia um perfume diferente no ar. Algo que lembrava jasmim, ou sândalo. Ele não era muito bom com aromas, mas sabia identificar cheiros que não pertenciam aos lugares.

Ele deixou a mochila sobre o vidro do fogão e caminhou silenciosamente até a pia. Puxou de dentro do escorredor uma faca de corte e a segurou rente à cintura, alerta.

Ele tinha o costume de deixar a luz do corredor acesa, não apenas para facilitar a sua chegada, mas porque a claridade permitia que ele visse os cômodos próximos sem precisar de ligá-los, também. Não havia ninguém na sala de televisão e ele verificou o banheiro social, também vazio.

Foi até o quarto, analisou tudo: armário, debaixo da cama, no box do banheiro. Não havia ninguém em seu apartamento e todas as janelas estavam fechadas por dentro, como de costume. Ele respirou fundo, a sensação de cansaço se alastrando ainda mais por seu corpo já dolorido, e ele se deixou deitar, sem nem mesmo trocar as roupas.

Acordou com Zeus lambendo sua mão que pendia para fora do colchão.

- Você deve estar com fome... - ele balbuciou, levantando-se e indo em direção ao armário da dispensa. Pegou o pote de ração e despejou na vasilha do cachorro, trocando a água da outra. Ele não havia dormido mais do que quarenta e poucos minutos, mas o tempo havia esfriado consideravelmente e o vento indicava chuva.

Ele olhou para o céu enquanto ouvia Zeus estraçalhar a ração com seus pequenos dentes e respirou fundo.

Mais uma vez, aquele cheiro preencheu suas narinas, fazendo-o arrepiar. De súbito, ele correu até o quarto, com Zeus em seu encalço e tateou a cama à procura da faca. Balançou o lençol, olhou debaixo da cama, apalpou o travesseiro e finalmente a encontrou, quase caindo atrás da cabeceira.

Pedro foi até o banheiro, ligou o chuveiro no modo "inverno" e deixou que a fumaça tomasse conta do ambiente. Trancou a casa, ajeitou o cobertor de Zeus e, finalmente, foi tomar seu merecido banho.

Deve ter permanecido ali, sentado no chão do box, deixando a força da água cair em suas costas por mais de uma hora. Quando sua pele começou a formigar, ele desligou o chuveiro, vestiu uma bermuda velha e foi para cama. Antes de dormir, inspirou profundamente, mas não sentiu mais o cheiro de flores. Devia ser o cansaço lhe pregando peças foi o último pensamento que teve antes de o sono se abater sobre ele por completo.

Por isso, Pedro não viu quando Zeus encontrou debaixo da mesa da cozinha uma proteção de orelha, dessas de fone de ouvido, de uma rosa muito chamativo, levando-a para sua caminha e estraçalhando-a com seus pequenos dentes.


Bianca Rolff


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sexta-feira, 28 de setembro de 2018

Crepúsculo dos Deuses

Ela estava em sua cama, deitada por cima das cobertas quentes, o rosto voltado para a janela velha e aberta. Ainda não era primavera, mas o clima havia esquentado consideravelmente. E quando ela dizia isso, era para além da questão meteorológica.
 
O céu estava vermelho, e ela sabia que, naquele caso, era mais do que o pôr-do-sol. Ela estreitou os olhos, buscando aguçar a visão, mas daquela distância, só o que conseguia era lacrimejar.
 
O clima havia esquentado, o céu estava vermelho e ela tinha certeza de que tudo era uma questão de tempo até que as coisas saíssem fora do controle. Podia parecer metáfora, mas...
 
Os Céus estavam em Guerra.
 
Ela já vivia longe daquele universo, das complicações familiares e dos conflitos divinos fazia muito. E aqui, na pequena cidade em que ela se encontrava, fazia ainda mais tempo que as pessoas não acreditavam na sua existência, e nem na de nenhum membro de sua família.
 
Ela suspirou, sentindo as costas doerem, motivo pelo qual permanecia deitada. Ali, em seu pequeno quarto, ela via o mundo ao qual pertencera durante tantas eras, onde fora criada e crescera, se destruir. Não que aquilo fosse uma surpresa (tantas guerras já haviam acontecido antes e o mundo sobrevivido), mas daquela vez, ela sentia que era diferente.
 
Daquela vez, ela sentia em suas costas.
 
Desviando o olhar do céu, que se escurecia com o sumiço do sol e camuflava o incêndio que por lá acontecia, ela se virou de lado, mordendo os lábios para não gritar.
 
Havia uma maçã na escrivaninha ao lado da sua cama, e agora ela pensava na ironia por trás daquilo. Tantas frutas para estarem ali, e justamente a mais conhecida de todas era a que lhe fazia companhia. Apesar da ausência de fome, ela precisava comer, portanto tentou reunir forças e se esticar até a fruta e pegá-la.
 
Uma dor lancinante percorreu a sua espinha e ela gritou, caindo no chão em meio aos soluços.
 
Desde o momento em que decidira deixar de lado as suas obrigações familiares, ela nunca mais havia se lembrado de como era a sua antiga vida. Nada, durante tanto tempo, a havia feito se lembrar de suas origens, e seus pais cumpriram a promessa de que a deixariam seguir o seu caminho. A única exceção seria em caso de guerra. A única exceção estava acontecendo e aquela dor era mais do que um aviso. Era O Chamado.
 
Apertando os dedos contra a escrivaninha, ela sentiu seu corpo se abrir, como se uma navalha a cortasse por toda a extensão de suas costas. As costelas pareciam se deslocar e ela perdeu completamente os sentidos, mas não a dor.
 
Sentiu que um clarão tomava conta de seus olhos fechados e, quando ela os abriu não conseguiu conter um suspiro de surpresa, medo e amor.
 
À sua frente, estava ele, estendendo sua mão para ajudá-la. Ela era muito mais nova que ele, sabia apenas de sua jornada, sua expulsão, tantas Guerras antes, mas ainda assim ele era seu irmão. E, Deus, como ele era lindo.
 
Foi então que ela perceber que o crepúsculo havia dado lugar ao amanhecer. Nada mais propício ao portador da luz.
 
Ela pegou a mão dele com força, sentindo seu corpo ser erguido com facilidade. Foi então que percebeu que não era ele quem a erguia, mas as próprias asas que agora se mostravam firmes em suas costas. Asas que, por tanto tempo, ela deixara de ter.
 
Recebendo um olhar de compreensão, de quem sabia mais do que ninguém o que era ser chamado de volta, eles permaneceram de mãos dadas e subiram aos Céus.
 
 
Em uma Guerra entre Deuses, os Anjos sempre eram os soldados mais fiéis.
 



Foto: Bruno Filipi

segunda-feira, 3 de setembro de 2018

o Véu



Ela estava deitada sobre a relva molhada, amarelada por um pálido e frio amanhecer. Seu corpo estava repleto de gotículas de orvalho, que lhe faziam cócegas na medida em que se espreguiçava... vagarosamente.

Seus dedos dos pés tocaram em florezinhas roxas, que ela sabia estarem ali esperando pela luz do sol para se abrirem. Sorriu. Também ela estava à espera do sol para florir.

Sentou-se num movimento quase em câmera lenta e olhou ao redor, recebendo no rosto o cheiro de um novo dia. Tudo o que via era a imensidão da natureza. O vale florido, as árvores frondosas e a floresta que se erguia escura a alguns pés de distância. Sempre se aproximou da entrada da floresta, decidida a, "dessa vez", aventurar-se por entre suas árvores longas e retorcidas, mas nunca levou a cabo suas intenções.

Naquele momento, entretanto, viu seu pés tocarem os galhos retorcidos da primeira árvore, depois da segunda, terceira, e muitas outras. A luz que iluminava seus cabelos acinzentados fora substituída por uma escuridão quase completa, recortada por alguns finos feixes de luz que conseguiam escapar pelo túnel de galhos retorcidos que se estendiam em direção ao céu.

Ela andou por um tempo que não soube definir, percebendo que não saberia mais encontrar a saída. Entretanto, aquilo não lhe era um problema. Respirava o ar frio da floresta como quem pela primeira vez inspira ar puro e verdadeiro. Sentia como se estivesse de volta ao lar, mesmo que nunca houvesse colocado os pés ali anteriormente.

Crack!, um galho seco se partiu com ruído, assustando-a mais que o normal. Ela olhou para o chão, abaixando-se devagar e notando não se tratar de um galho, mas de uma espécie de varinha, tão retorcida quando as árvores ao redor. Nunca fora de crer em contos de fadas, por mais propícios fossem a estas histórias os locais por onde crescera. Vales verdes e cheios de animaizinhos pequenos e exóticos, castelos e casas circulares, florestas negras e ameaçadoras. Eram tantas as histórias que ouvia desde criança que aos poucos elas, ao invés de se tornarem mágicas, foram ficando maçantes e sem graça.

Pegou delicadamente as duas partes quebradas da varinha e, mesmo sabendo que era de uma tolice infantil, encaixou-as, fazendo com que a varinha se tornasse una de novo.

Um líquido prateado escorreu pela emenda da varinha e a envolveu como um véu de seda. Ela não conseguia soltar o objeto, fosse por tamanho espanto ou por alguma coisa oculta que a fazia continuar segurando-a. O líquido escorreu para as suas mãos e aos poucos envolveu todo o seu corpo, com uma cócega fria e formigante.

Envolvida numa espécie de bolha, ela se sentiu sugada para dentro do sonho que tivera naquela madrugada. Uma mistura de vozes sussurrantes, mãos sem dono e uma canção infantil que a faziam se sentir muito bem. Seus pés já não mais tocavam o chão e ela era guiada pelas mãos indefinidas em direção ao desconhecido; uma rainha louvada por súditos fiéis.

O frio e o formigamento sessaram. Ela abriu os olhos e notou que segurava apenas a parte inferior da varinha. Olhou no chão ao redor, procurando a parte faltante, mas não conseguiu encontrá-la. Não havia vestígios do líquido prateado que a havia envolvido, nem mesmo a varinha agora parecia mais do que um mero galho partido. Resolveu guardá-la, contudo, como uma espécie de troféu de sua primeira andança pelas florestas.

Olhando para frente, notou que as árvores agora se abriam para um caminho relativamente largo e iluminado por uma cor azulada. Quase na linha do horizonte, ela avistava o pequeno castelo onde morava.

Recomeçou a andar, com os olhos fixos no castelo, mas deixando o pensamento naquele lugar que ela, pela primeira vez, considerava mágico. Pretendia buscá-lo depois.

Imagem: Pinterest -
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Por Bianca Rolff

segunda-feira, 11 de junho de 2018

Profundas Minúcias



Ele acordara com o peito ardente, a boca seca e o bolo - aquele bolo que habitava sua garganta havia tempos - mais incômodo do que nunca.

Às vezes ele se sentia pequeno. Não em tamanho, - ele se sentia ok sobre isso -, mas por seus pensamentos. Era como se, por vezes, o ar o comprimisse para dentro de si mesmo e ele perdesse o controle das ideais.

Na noite anterior, ela o levara em casa e ele se sentiu diferente. Não, não era clichê, desses ditos para a pessoa de quem se gosta. Ela o havia feito se sentir... pequeno. Toda aquela segurança, todo o seu jeito de lidar com as coisas, o modo como ela conseguia dirigir a vida e o próprio carro como se nada mais importasse. Ele se impressionara, de um jeito que não fazia há bastante tempo. Era um misto de admiração e medo. Ele tinha medo de não bastar, de sucumbir antes mesmo de iniciar a subida.

Era o efeito da adrenalina em um esporte radical.

Fazia frio naquela manhã e nem mesmo o chá quente em suas mãos parecia adiantar. Todavia, o frio em sua pele atestava que ele estava vivo, lhe dizia para respirar fundo, ainda que a compressão em sua cabeça continuasse exponencialmente. Ele saiu para a varanda e, tirando um cigarro recém bolado de dentro do bolso do moletom, acendeu-o.

Inspira...

Prende...

Expira...

Os círculos de fumaça sempre foram algo que ele almejara conseguir fazer. Ainda estava tentando.

O frio concentrava-se em seus lábios como se nenhuma outra parte do corpo tivesse importância. Ele sentia a pele da boca se dividindo com um mísero movimento, o gosto do sangue se misturando ao da erva a queimar sua garganta.

A ardência do peito diminuiu. A pressão sobre sua cabeça pareceu ceder um pouco. Mas não havia nada que ele pudesse fazer com o bolo.

Ele apagou a ponta do cigarro na parede, guardando-a no bolso e entrou em casa. Serviu-se novamente de chá, colocando por cima da xícara nova a tampa de pressão, tudo comprado na loja de artigos importados, aquela famosa. Foi até o quarto e, sem acender a luz, agachou-se ao lado da cama, colocando a xícara no móvel de cabeceira.

Ela dormia um sono profundo e tranquilo, enrolada até o pescoço no cobertor de lã surrado. Ele teve vontade de acariciar seu rosto, fazer cafuné em seus cabelos embolados num coque estranho que só ela sabia fazer,  mas preferiu não ser a causa de seu acordar repentino.

Ficou ali, olhando para ela no escuro do quarto por um tempo incontado. Ela era gigante. Aqueles um metro e sessenta pareciam dois. Sem esforço ou premeditações, ela crescia, brilhava e ele se pegava acanhado e amedrontado, quase como um menino que tentasse andar de skate pela primeira vez.

O bolo em sua garganta se moveu, para cima e para baixo. Se tivesse sabor, ele uma vez pensara no assunto, com certeza seria de algo bem amargo. Certamente não chocolate. Ele engoliu a saliva com força, buscando amaciar o que quer que estivesse morando em sua garganta. O movimento fez seu peito arder e ele perdeu o equilíbrio, apoiando-se na mesa de cabeceira e rangendo o chão.

Ela se moveu felinamente na cama, abrindo aqueles olhos grandes e borrados de maquiagem, fixando-os nele.

Sol.

Calor.

Sorrindo, ela esticou as mãos, tocando-lhe os cabelos desgrenhados. O que quer que ele tinha na garganta e no peito fizeram uma festa dentro dele, parando no estômago.

- Você está com cheiro de chá - ela disse, como se aquela afirmação fosse a mais importante do mundo naquele momento.

- Eu ouvi dizer que você gosta muito de ervas - ele disse, completando o ciclo de duplos sentidos.

Abrindo ainda mais o sorriso, ela pegou a xícara da cabeceira e, recostando-se na cama, começou a beber. Ele se levantou e saiu do quarto, abrindo um pouco da cortina ao passar.

Ele não era bom com palavras, por isso fugia de conversas longas. Mas desde a noite anterior vinha pensando na maneira mais bonita de dizer que sentia por ela aquele grande clichê.

Ele sorriu, passando os dedos entre os cabelos. Realmente estava cheirando a chá.


- B. R.

quinta-feira, 8 de março de 2018

8 (ou Infinito)



Hoje, me olhei no espelho e gostei do que vi. Os olhos, que por muitos dias se anuviavam, deram espaço para dois pequenos sóis. As bochechas, outrora grandes e coradas, que agora encovavam a face como numa encenação de Morte e Vida Severina, hoje estavam ligeiramente mais protuberantes. Meus cabelos, longos e brilhantes, que há algumas semanas sentiram o leve peso da tesoura a lhes picotarem num momento de solidão, estavam daquela cor ruiva que só se fazia ver quando se aproximava a primavera.
Observei os ossos em pontos da cintura, as saboneteiras salientes que até pouco tempo jamais couberam nenhum sabonete, a tatuagem de dragão que agora parecia adormecido, a boca avermelhada e carnuda que permanecera bela. Eu me sentia bem.

Hoje era meu dia. Eu não havia recebido flores, chocolates, presentes ou abraços. Não recebi visita de um amor, não ouvi elogios vindos das ruas, tampouco fui marcada numa publicação com foto feliz. Não me disseram que eu era linda, que merecia o mundo, que tudo ficaria bem e que os maus momentos passariam. Não recebi convites para jantar, para ir ao cinema ou para passar o dia ouvindo música na jukebox do antigo bar da esquina. Ainda assim, hoje era o meu dia, e eu me olhei no espelho e gostei do que vi.

Eu vi o futuro. Em cada marca, em cada lágrima, em cada curva e curvatura, ali estava o meu  ontem, o meu hoje e o meu amanhã. Mais uma primavera que floria a esperança infinita de ser, com orgulho, minha maior fã.

Passei meu batom mais bonito e, sorrindo de canto a canto, me beijei. 🔴⚫⏺️

quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

[ T o q u e ]

Ele chegou em casa, depois de um dia extremamente cansativo. Passou pelos longos cômodos até chegar ao quarto, cansado e repleto de um orgulho que há muito não sentia.

Trabalhar com música o fazia se sentir vivo. Poucas coisas no mundo eram capazes de mexer com os sentimentos das pessoas como letra & melodia, e ele, agora já crescido e adulto, percebia que havia nascido para aquilo.

O dia tinha sido bom. Gravara duas músicas em estúdio, fechara dois trabalhos para os próximos meses e ainda tivera tempo de passar em um pequeno bar no caminho de casa e prosear com alguns velhos amigos. Agora, contudo, ele só queria deitar e fechar os olhos.

Tirara a camisa, largando-a pelo chão do quarto e se jogara sobre a cama ainda bagunçada. Sentiu o corpo relaxar, os músculos se descontraírem e o cansaço se abater sobre ele.

Estava quase adormecendo quando uma pequena onda de vibrações percorreu a sua coxa. Colocando a mão no bolso da calça, retirou o celular e viu que havia uma série de mensagens. Sem muita paciência, percorreu os olhos por elas, absorvendo vagamente o conteúdo. Havia muitas mensagens de admiradores do seu trabalho, pessoas querendo parcerias e mais algumas elogiando algum de seus vídeos veiculados na internet. Outras tantas eram de outro teor. Ele vinha aprendendo que a ascensão como um dos músicos mais promissores da atualidade trazia consigo um assédio muito grande, e muitas das vezes de jovens extremamente bonitas, dentro daquilo que ele considerava ser o seu "padrão". Ele geralmente respondia, dava certa atenção, afinal, não havia justificativas para que não fosse gentil e educado. Suas redes sociais cada vez mais vinham se abarrotando de elogios, mensagens de duplo sentido, convites inesperados, às vezes fotos muito reveladoras. Ele lidava com aquilo da melhor forma possível, cuidando para que soubesse discernir entre sinceridade e mero interesse pelo que se poderia conseguir com a sua fama. Entretanto, a sua empolgação com esse tipo de mensagem era passageira.

Ele fechou os olhos. A única imagem que via era dela. Ela. E ele tinha ferrado com tudo.

Nunca se imaginou apaixonado, perdido em pensamentos e planos para o futuro, mas em menos de dois meses, era exatamente assim que ele estava. O peito pulando com a ansiedade a cada vez que pensava em encontrar com ela, em lhe fazer uma surpresa ao final do dia, em imaginar que ela estaria na plateia no próximo show. Ele se apaixonara à primeira vista de seu sorriso, e jamais se imaginou tão leve e completo. Ela era pura energia, contagiante em sua alegria, seus cabelos que reluziam ao menor sinal da lua e o coração mais repleto de amor que ele já tivera a chance de conhecer.

Mas ele estragou tudo. Com o tempo, ele se afastou. Mergulhou tão profundamente no trabalho que não mais a via. Se ela mandava mensagens, respondia de maneira seca, sem aquela profusão de palavras que tanto a encantaram. Ele se lembrava de quando a presenteara com uma música improvisada ao final da noite, depois de pegá-la na faculdade e a levar para o mirante mais bonito da cidade. Ele dedilhara no violão uma canção de pouco mais de um minuto, e quando olhou para ela, viu o choro mais lindo de toda a sua vida. Foi naquele momento que ela se abrira para ele, fazendo-o perceber que por mais radiante que ela fosse, ela não estava acostumada com o amor.

E ele, aos poucos, fugira. Hoje percebia tudo com clareza. Aquela luz pela qual ele se apaixonara perdidamente nela foi aos poucos se tornando opaca, tremeluzente. Com o seu próprio afastamento e consequente fechamento, conseguia traçar cada um dos sintomas refletidos nela. As palavras de amor ditas pela sua doce voz se tornaram pequenas e receosas, quase como se ela lhe pedisse desculpas cada vez que as pronunciava. Os encontros duravam cada vez menos e ela, que nunca reclamava de nada, apenas saía, e ele agora entendia que o avermelhar de suas faces não eram blush. Os shows em que ela fazia questão de prestigiar, sentada sempre aos fundos do ambiente, deixando que as fãs nem soubessem de sua existência, aos poucos foram se tornando esporádicos... até que ela não mais estava lá. Ela não estava mais lá, pois não suportara amar sozinha.

Ele lhe ofertara o mundo e a deixara viver nele sem a sua companhia. A verdade é que ele fugira para as suas próprias músicas sem perceber a tempo que a melodia mais importante não vinha de seus dedos, mas do pulsar do peito.

Abriu os olhos, sentindo o rosto quente e molhado. O mesmo avermelhar da face que ele agora sabia que ela provavelmente sentia todas as noites em que ele se fizera partir. Partir... Esse verbo que obrigatoriamente possuía dois gumes. Ele, fugindo daquilo que mais ansiava, partira, e ela se partiu em pedaços.

O telefone vibrou novamente e ele abriu a caixa de mensagens só para ver mais elogios, tentações e possibilidades. Apertou o botão de desligar, colocou o aparelho em cima da cômoda e pegou o violão.
Fonte: Pinterest
Na noite em que a levara ao mirante, ele tinha dito a ela que guardasse aqueles minutinhos de improviso na memória, porque ele não se lembraria da música após algumas cervejas e cigarros. Tinha dito aquilo apenas para descontraí-la, deixá-la mais à vontade e vê-la sorrir aquele sorriso que revirava tudo do avesso. Quando chegara em casa naquela noite, contudo, terminara de compor a canção, mas nunca lhe dissera nada. Talvez a sua autossabotagem já despontasse ali.

Dedilhou-a toda no violão, sem se importar com a hora e o possível incômodo dos vizinhos. Uma das músicas que gravara em estúdio mais cedo era justamente essa. Em alguns dias a estrearia ao vivo, de forma inédita antes de divulgá-la na internet. Dissera aos seus produtores que era para causar mais impacto, mas no fundo de seu tão apertado peito sabia que fazia aquilo na esperança de olhar para um único par de olhos no fundo do salão e ter a chance de recomeçar.




- B. Rolff