sábado, 24 de novembro de 2018

Um aroma de rosa




Ainda não era noite e Pedro já não via a hora de chegar em casa e dormir. Saíra para trabalhar pela manhã após uma noite mal dormida e tinha a sensação de que seus olhos tinham sido lavados com areia.

O ônibus sacolejava pelos buracos do subúrbio da capital e o movimento o embalava. Por vezes, se pegou pendendo o pescoço para a lateral do corpo, pedindo desculpas para o passageiro ao lado pelo incômodo de ter uma cabeça em seu ombro sem o consentimento. 

O ônibus, agora, já mais vazio, se encaminhava para os últimos pontos e ele se sentia impelido a ficar animado. Mais alguns quarteirões e poderia, finalmente, descansar.

Uma freada brusca o tirou de seus devaneios e o jogou contra a poltrona da frente. Por pouco sua boca não ia de encontro ao encosto duro e gasto, o que não seria nenhum pouco agradável. Ele engoliu um palavrão contra a motorista - Rose -, pois sabia o quão boa e responsável profissional ela era. Quase nunca a vira trocar uma marcha sequer de maneira abrupta.

A porta se abriu e um homenzinho magro e com aparência decrépita entrou, passando o cartão no sensor. Pedro engasgou com a própria saliva quando o ônibus arrancou e o homem passou a catraca, mas notou que ele usava um fone de ouvido com a corda rosa pendurado apenas numa orelha, muito chamativo para a sua aparência tão encolhida. Normalmente, Pedro lhe desejaria uma boa noite, mas estava muito cansado para expressar qualquer coisa verbalmente.

Prosseguiram viagem e as duas últimas pessoas que haviam antes do homenzinho entrar no ônibus desceram, sobrando apenas ele e Pedro. Este último gostava da sensação de viajar só. Era como se tivesse o ônibus apenas para si, uma regalia estranha da vida de trabalhador.

O ponto em que Pedro descia se aproximou e ele deu o sinal. Rose diminuiu a velocidade e, antes de descer, ele se despediu:

- Até segunda, Rose!

- Juízo, meu filho! - ela disse, já fechando as portas.

Pedro esperou que o ônibus saísse e viu o homenzinho ser o único passageiro restante.

Do ponto até sua casa eram apenas dois quarteirões de descida, então Pedro os percorreu rapidamente. Morava em uma casa pequena, quase na esquina com uma grande avenida, um local tranquilo e sem o movimento contínuo de carros do centro da cidade.

Ele abriu o portão, brincou com Zeus, seu filhote de vira-lata recém adotado, e passou pela porta da cozinha. Não precisou de mais do que uma olhada para saber que havia algo errado.

Aparentemente, tudo estava no lugar, mas havia um perfume diferente no ar. Algo que lembrava jasmim, ou sândalo. Ele não era muito bom com aromas, mas sabia identificar cheiros que não pertenciam aos lugares.

Ele deixou a mochila sobre o vidro do fogão e caminhou silenciosamente até a pia. Puxou de dentro do escorredor uma faca de corte e a segurou rente à cintura, alerta.

Ele tinha o costume de deixar a luz do corredor acesa, não apenas para facilitar a sua chegada, mas porque a claridade permitia que ele visse os cômodos próximos sem precisar de ligá-los, também. Não havia ninguém na sala de televisão e ele verificou o banheiro social, também vazio.

Foi até o quarto, analisou tudo: armário, debaixo da cama, no box do banheiro. Não havia ninguém em seu apartamento e todas as janelas estavam fechadas por dentro, como de costume. Ele respirou fundo, a sensação de cansaço se alastrando ainda mais por seu corpo já dolorido, e ele se deixou deitar, sem nem mesmo trocar as roupas.

Acordou com Zeus lambendo sua mão que pendia para fora do colchão.

- Você deve estar com fome... - ele balbuciou, levantando-se e indo em direção ao armário da dispensa. Pegou o pote de ração e despejou na vasilha do cachorro, trocando a água da outra. Ele não havia dormido mais do que quarenta e poucos minutos, mas o tempo havia esfriado consideravelmente e o vento indicava chuva.

Ele olhou para o céu enquanto ouvia Zeus estraçalhar a ração com seus pequenos dentes e respirou fundo.

Mais uma vez, aquele cheiro preencheu suas narinas, fazendo-o arrepiar. De súbito, ele correu até o quarto, com Zeus em seu encalço e tateou a cama à procura da faca. Balançou o lençol, olhou debaixo da cama, apalpou o travesseiro e finalmente a encontrou, quase caindo atrás da cabeceira.

Pedro foi até o banheiro, ligou o chuveiro no modo "inverno" e deixou que a fumaça tomasse conta do ambiente. Trancou a casa, ajeitou o cobertor de Zeus e, finalmente, foi tomar seu merecido banho.

Deve ter permanecido ali, sentado no chão do box, deixando a força da água cair em suas costas por mais de uma hora. Quando sua pele começou a formigar, ele desligou o chuveiro, vestiu uma bermuda velha e foi para cama. Antes de dormir, inspirou profundamente, mas não sentiu mais o cheiro de flores. Devia ser o cansaço lhe pregando peças foi o último pensamento que teve antes de o sono se abater sobre ele por completo.

Por isso, Pedro não viu quando Zeus encontrou debaixo da mesa da cozinha uma proteção de orelha, dessas de fone de ouvido, de uma rosa muito chamativo, levando-a para sua caminha e estraçalhando-a com seus pequenos dentes.


Bianca Rolff


Imagem: https://images5.alphacoders.com/641/641463.jpg




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