sexta-feira, 5 de julho de 2019

A criação de diálogos da Senhorita Rolff para Cineastas Peculiares

Se você está acessando este artigo através do vídeo do nosso canal no youtube, já deve estar super curioso, afinal de contas, você deve ter ficado sem fala, não é mesmo? (risos) Mas se você se encontra com a gente aqui direto pelo blog ou por outros meios, a ordem dos fatores não altera o produto. Então vamos dialogar!

Enrolados


Estamos aqui para falar de diálogos, uma das peças mais importantes (e mais difíceis!) de se construir quando pensamos em filmes, seriados, novelas, ou mesmo aquela história incrível que estamos escrevendo para lançar na próxima bienal do livro. Mas vamos nos ater aos meios audiovisuais, porque a questão aqui gira justamente em torno desse termo: au-dio-vi-su-al.

Quando criamos um roteiro, temos em mente que aquela história está sendo desenvolvida para ser VISTA e OUVIDA. E é justamente por isso que os diálogos muitas vezes se tornam um problemão. Okay, estamos ali, com o roteiro na mão, fazendo uma leitura de reconhecimento da história, passamos pelas cenas, lemos os diálogos, tudo na mais perfeita ordem...

Até que resolvemos ler o roteiro em voz alta.

Aí a coisa vira uma confusão. Já deve ter acontecido com você de ler uma determinada fala de um personagem e pensar "nossa, mas ninguém fala desse jeito". Ou pior: você ASSISTIU a um filme e viu um ator falando alguma coisa de uma forma tão estranha que a sua atenção se deslocou para a parte negativa do filme, e não para a fruição dele como um todo. Todas essas situações dizem respeito à construção de diálogos.

Sleepy Hollow


A grande dificuldade que temos ao construir falas para personagens está em diferenciarmos o tipo de escrita e o tipo de pesquisa necessárias para o momento em que os criamos. Pensando nisso e querendo sempre ajudá-los na grande saga que é enveredar pelo universo audiovisual, let's talk about talking.

Tipo de Escrita

Já falamos em um artigo anterior aqui no blog que o roteiro é uma peça objetiva, que visa descrever situações que serão encenadas e vistas em algum tipo de tela. A criação da mise-èn-scene (o que acontece na cena) pressupõe um tipo de escrita que foge de subjetividades, focando efetivamente nas ações dos personagens. Até aqui tudo certo? Claro, porque você já leu o nosso artigo e entendeu todas as dicas que demos! Porém, entre as possíveis ações de um personagem, está a sua fala. E escrever a fala de alguém pressupõe que você esteja lidando com pessoas... e pessoas diferentes falam de formas... advinha? Diferentes. Portanto, o primeiro ponto que temos que ter em mente é que os diálogos não são mais descrições objetivas do que acontece nas cenas, mas estão (devem!) conter uma série de subjetividades inerentes a cada um dos personagens. O que nos leva direto ao segundo ponto!

Tipo de Pesquisa

Uma das primeiras etapas de escrita de uma história está na construção dos personagens. Quem são, onde vivem, quais suas preferências, com o quê trabalham, de quê tem medo, como falam? Parece um documentário do Globo Repórter, eu sei. Além disso, também decidimos qual o gênero da nossa narrativa, o aspecto espaço-temporal da história (onde e quando ela se passa?). Essas são algumas perguntinhas que nos fazemos ao desenvolvermos uma história. E são estas pesquisas que refletirão posteriormente quando formos desenvolver as falas de cada personagem. Pensa aqui com a gente: Se estamos lidando com uma história que se passa na década de 1930, e o nosso protagonista é um malandro, que vive em um cortiço caindo aos pedaços, mas que finge ser um milhonário para aplicar golpes em moças desavisadas, com certeza ele não falará da mesma maneira que um herdeiro de um reino futurista, que é obrigado a entrar para as forças do exército de seu pai se quiser salvar seu povo de um ataque vindo de além-mar.

Portanto, o modo como escrevemos os diálogos está intrinsecamente ligado aos aspectos particulares da nossa história e subjetivos dos nossos personagens. Lembre-se: o roteiro com um todo deve ser objetivo, mas há espaço para a subjetividade nos diálogos. É isso que os diferencia e diferencia um bom escritor. Afinal, são seres tão peculiares quanto suas criações. ;)

O Lar das Crianças Peculiares


Ah! E para quem notou a peculiaridade do nosso vídeo do youtube, vamos acrescentar aqui um pontinho: os diálogos não surgiram apenas no cinema falado. O cinema mudo também sempre possuiu falas e diálogos. Entretanto, a sua construção se aproxima muito mais de uma explicação através da legendagem do que um trabalho mais voltado às peculiaridades dos personagens. Basta lembrarmos das placas entre uma cena e outra, em uma tela preta... E viva Chaplin, viva Buster Keaton e todos esses mestres do Cinema!



sábado, 29 de junho de 2019

Como escrever um bom roteiro?

Aposto que recentemente você assistiu a algum filme no cinema, ou uma série muito interessante numa plataforma de video on demand que te fez pensar: nossa, como foi que criaram algo tão interessante e único? E essa é uma reação muito normal nos dias de hoje, em que tantos conteúdos diferentes são produzidos para as telonas e telinhas. Geralmente, a resposta para esta pergunta está em se compreender como se criam bons roteiros.


Bem, para começar a nossa saga de compreensão dessa ferramenta tão importante, é legal entendermos o que queremos dizer quando falamos de Roteiro Audiovisual. Talvez você diga "ah, mas isso não é óbvio?". Bom... como não podemos pressupor que seja óbvio para todo mundo, vamos a uma pequena explicação.

Roteiro Audiovisual é uma ferramenta escrita, objetiva, que conta uma determinada história, com personagens e situações específicas, divididas em blocos espaço-temporais chamados de cenas. É objetiva porque a sua função é descrever o que será observado nas telas, buscando dar ênfase nas ações dos personagens, naquilo que será efetivamente visto por todos que assistirem ao produto final.

Um bom roteiro audiovisual deve contar com algumas características, dentre elas estar bem formatado e muito bem escrito. Pense que é através dele que TODA uma equipe de filmagem e TODO um elenco terão contato com a sua história, portanto, se estivermos falando de algo confuso, com interpretações diversas, provavelmente teremos um grande problema pela frente.

Hoje em dia, a grande maioria dos roteiros segue um formato chamado de Master Scenes, que dá destaque à criação narrativa (o desenvolvimento do enredo, da história, mesmo!) sem ficar preocupado com a indicação de planos e decupagens (função do diretor, não do roteirista).

Uma das dicas mais importantes para um bom desenvolvimento da narrativa é saber sobre a estrutura básica de uma história. E geralmente, podemos estruturá-la a partir da divisão em 3 ATOS.
Basicamente, toda história consegue se estruturar em:

ATO 1 - APRESENTAÇÃO
Momento inicial em que serão apresentados os personagens e os locais onde a história se passa.
ATO 2 - DESENVOLVIMENTO
Quando os personagens principais se vêem diante de uma questão que precisa ser resolvida (conflito) e saem em busca da solução.
ATO 3 - CONCLUSÃO
Quando temos o confronto final, o momento mais esperado da história (clímax) e a resolução do conflito.


Fonte da imagem: https://claritybr.wordpress.com/tag/estrutura-de-3-atos/


Após esta compreensão, passamos a uma etapa de formatação, isto é, colocarmos a nossa história numa forma adequada, transformá-la de fato em um roteiro. Para deixar tudo ainda mais claro para você, fizemos um vídeo falando sobre alguns dos programas mais indicados para se trabalhar com roteiro, sendo um deles (CeltX), gratuito!

Trecho do roteiro de "Cidade de Deus", disponível em:
https://www.tertulianarrativa.com/comoeroteirodecinema

(Se você ainda não está familiarizado com estes termos e quer saber muito mais, a gente te indica o melhor e-book de roteiro! É só clicar AQUI!)


Claro, estes são apenas alguns dos pontos importantes para se fazer uma história digna de um Oscar, ou de se encontrar no catálogo da Netflix ou da Amazon, e com toda certeza os filmes e séries que fizeram você questionar COMO eles foram feitos passaram por estas e todas as demais etapas. Lembre-se: para se ter um resultado maravilhoso, é preciso trabalho árduo e muita dedicação!

Afinal, para ser diferente, é preciso praticar bastante!




domingo, 9 de junho de 2019

Objeção de Consciência

O escritório estava vazio. Todos os associados haviam ido embora e ele, sinceramente, deveria ter feito o mesmo, mas lá estava. 

A luz do abajur iluminava sua mesa impecavelmente limpa, a mesma em que, minutos antes, ele havia se sentado para se recuperar do impacto. Um beijo. Ela havia lhe beijado furtivamente e ele não sabia se vibrava ou se se sentia a pior das criaturas.

Fazia tempo que ele a observava. Via-a lidar com os casos difíceis, com as mudanças de planos corriqueiras em processos criminais, uma verdadeira mulher que domina a sua área. Mas, em alguns momentos, ele percebia seus olhos distantes, como se fugissem do espaço de trabalho para um local secreto, um refúgio que só a sua mente sabia, um lugar em que mais ninguém tinha permissão para entrar. Mas ele queria a chave.

Ela era comprometida. E ele também. Não era casado, não tinha namorada ou coisa do tipo, mas tinha um compromisso fiel com seu trabalho e com as suas convicções. Portanto, aquele beijo inesperado havia mexido com as suas estruturas, abalado o advogado mais vencedor (e talvez por isso, ligeiramente mais arrogante) da firma. Ela o havia beijado, mas fora ele quem a levara a isso. "Encurralar", esse era o termo usado nos bastidores dos processos. Levar alguém a fazer algo que não faria, em uma situação ordinária. Ele só não imaginava que aconteceria, de fato.

Sentindo-se sufocado, ele afrouxou a gravata no pescoço e foi em direção ao seu freezer particular. Retirou uma pequena garrafa de vinho e despejou todo o seu conteúdo em uma taça bonita, presente de um de seus clientes mais famosos. Às vezes, os clientes podiam ser realmente pessoas boas, não apenas meios para ganharem dinheiro. 

A vida, entretanto, podia se tornar bastante cansativa.

Ele se deixou recostar no sofá, local que se tornara mais sua cama nos últimos meses do que qualquer outra em sua residência. Passava tanto tempo naquele pequeno espaço que talvez pudesse considerar pedir uma espécie de usucapião. Ele riu do próprio pensamento e sentiu as bochechas ficarem ligeiramente coradas. O vinho desceu como um carinho, uma mão de veludo a lhe mostrar que as coisas podiam não ser tão complicadas. 

A única coisa que ele queria era não se sentir tão... culpado. A sua consciência lhe dizia que não havia provas de sua má conduta, ao contrário, tudo o que ele fez foi ser presente, algo que sabia que o companheiro dela não era. O "namorado-fantasma", como ele mentalmente o apelidara. Nunca aparecia nas confraternizações, nunca aparecia com ela em fotos de família, aliás, ele tinha algumas dúvidas de que o rapaz realmente conhecesse à fundo algum familiar dela. Ao contrário dele, que a conhecia e toda a sua família, desde a faculdade. Porque, então, aquele beijo o incomodava tanto?

Terminou o vinho e só então percebeu que havia ficado totalmente no escuro. Levantando-se, caminhou até o abajur e notou que a luz havia queimado. Ele retornou ao sofá e se deitou, colocando os pés de sapatos caros em cima do couro macio, algo que ele jamais faria. Mas não estava em plenas condições de se auto-repreender ainda mais.

Pegando o celular do bolso, viu que havia algumas chamadas perdidas, dentre elas uma de um número conhecido. Ela havia ligado para ele há não mais que cinco minutos, porém não deixara recado ou mensagem. Ele respirou fundo, o gosto de vinho em suas bochechas ainda bem intensos. Talvez aquela fosse a hora de simplesmente não fazer nada. Em toda a sua vida, ele havia movido todas as montanhas por quem amava, mas não havia recebido nada em troca. Talvez, aquela fosse a hora dele simplesmente descansar e não tentar uma estratégia de ataque. Uma objeção de consciência, por falta melhor de um termo. 

Fechando os olhos, ele buscou seu próprio refúgio, o lugar que mais ninguém podia entrar.



- B. R.

sábado, 24 de novembro de 2018

Um aroma de rosa




Ainda não era noite e Pedro já não via a hora de chegar em casa e dormir. Saíra para trabalhar pela manhã após uma noite mal dormida e tinha a sensação de que seus olhos tinham sido lavados com areia.

O ônibus sacolejava pelos buracos do subúrbio da capital e o movimento o embalava. Por vezes, se pegou pendendo o pescoço para a lateral do corpo, pedindo desculpas para o passageiro ao lado pelo incômodo de ter uma cabeça em seu ombro sem o consentimento. 

O ônibus, agora, já mais vazio, se encaminhava para os últimos pontos e ele se sentia impelido a ficar animado. Mais alguns quarteirões e poderia, finalmente, descansar.

Uma freada brusca o tirou de seus devaneios e o jogou contra a poltrona da frente. Por pouco sua boca não ia de encontro ao encosto duro e gasto, o que não seria nenhum pouco agradável. Ele engoliu um palavrão contra a motorista - Rose -, pois sabia o quão boa e responsável profissional ela era. Quase nunca a vira trocar uma marcha sequer de maneira abrupta.

A porta se abriu e um homenzinho magro e com aparência decrépita entrou, passando o cartão no sensor. Pedro engasgou com a própria saliva quando o ônibus arrancou e o homem passou a catraca, mas notou que ele usava um fone de ouvido com a corda rosa pendurado apenas numa orelha, muito chamativo para a sua aparência tão encolhida. Normalmente, Pedro lhe desejaria uma boa noite, mas estava muito cansado para expressar qualquer coisa verbalmente.

Prosseguiram viagem e as duas últimas pessoas que haviam antes do homenzinho entrar no ônibus desceram, sobrando apenas ele e Pedro. Este último gostava da sensação de viajar só. Era como se tivesse o ônibus apenas para si, uma regalia estranha da vida de trabalhador.

O ponto em que Pedro descia se aproximou e ele deu o sinal. Rose diminuiu a velocidade e, antes de descer, ele se despediu:

- Até segunda, Rose!

- Juízo, meu filho! - ela disse, já fechando as portas.

Pedro esperou que o ônibus saísse e viu o homenzinho ser o único passageiro restante.

Do ponto até sua casa eram apenas dois quarteirões de descida, então Pedro os percorreu rapidamente. Morava em uma casa pequena, quase na esquina com uma grande avenida, um local tranquilo e sem o movimento contínuo de carros do centro da cidade.

Ele abriu o portão, brincou com Zeus, seu filhote de vira-lata recém adotado, e passou pela porta da cozinha. Não precisou de mais do que uma olhada para saber que havia algo errado.

Aparentemente, tudo estava no lugar, mas havia um perfume diferente no ar. Algo que lembrava jasmim, ou sândalo. Ele não era muito bom com aromas, mas sabia identificar cheiros que não pertenciam aos lugares.

Ele deixou a mochila sobre o vidro do fogão e caminhou silenciosamente até a pia. Puxou de dentro do escorredor uma faca de corte e a segurou rente à cintura, alerta.

Ele tinha o costume de deixar a luz do corredor acesa, não apenas para facilitar a sua chegada, mas porque a claridade permitia que ele visse os cômodos próximos sem precisar de ligá-los, também. Não havia ninguém na sala de televisão e ele verificou o banheiro social, também vazio.

Foi até o quarto, analisou tudo: armário, debaixo da cama, no box do banheiro. Não havia ninguém em seu apartamento e todas as janelas estavam fechadas por dentro, como de costume. Ele respirou fundo, a sensação de cansaço se alastrando ainda mais por seu corpo já dolorido, e ele se deixou deitar, sem nem mesmo trocar as roupas.

Acordou com Zeus lambendo sua mão que pendia para fora do colchão.

- Você deve estar com fome... - ele balbuciou, levantando-se e indo em direção ao armário da dispensa. Pegou o pote de ração e despejou na vasilha do cachorro, trocando a água da outra. Ele não havia dormido mais do que quarenta e poucos minutos, mas o tempo havia esfriado consideravelmente e o vento indicava chuva.

Ele olhou para o céu enquanto ouvia Zeus estraçalhar a ração com seus pequenos dentes e respirou fundo.

Mais uma vez, aquele cheiro preencheu suas narinas, fazendo-o arrepiar. De súbito, ele correu até o quarto, com Zeus em seu encalço e tateou a cama à procura da faca. Balançou o lençol, olhou debaixo da cama, apalpou o travesseiro e finalmente a encontrou, quase caindo atrás da cabeceira.

Pedro foi até o banheiro, ligou o chuveiro no modo "inverno" e deixou que a fumaça tomasse conta do ambiente. Trancou a casa, ajeitou o cobertor de Zeus e, finalmente, foi tomar seu merecido banho.

Deve ter permanecido ali, sentado no chão do box, deixando a força da água cair em suas costas por mais de uma hora. Quando sua pele começou a formigar, ele desligou o chuveiro, vestiu uma bermuda velha e foi para cama. Antes de dormir, inspirou profundamente, mas não sentiu mais o cheiro de flores. Devia ser o cansaço lhe pregando peças foi o último pensamento que teve antes de o sono se abater sobre ele por completo.

Por isso, Pedro não viu quando Zeus encontrou debaixo da mesa da cozinha uma proteção de orelha, dessas de fone de ouvido, de uma rosa muito chamativo, levando-a para sua caminha e estraçalhando-a com seus pequenos dentes.


Bianca Rolff


Imagem: https://images5.alphacoders.com/641/641463.jpg




sexta-feira, 28 de setembro de 2018

Crepúsculo dos Deuses

Ela estava em sua cama, deitada por cima das cobertas quentes, o rosto voltado para a janela velha e aberta. Ainda não era primavera, mas o clima havia esquentado consideravelmente. E quando ela dizia isso, era para além da questão meteorológica.
 
O céu estava vermelho, e ela sabia que, naquele caso, era mais do que o pôr-do-sol. Ela estreitou os olhos, buscando aguçar a visão, mas daquela distância, só o que conseguia era lacrimejar.
 
O clima havia esquentado, o céu estava vermelho e ela tinha certeza de que tudo era uma questão de tempo até que as coisas saíssem fora do controle. Podia parecer metáfora, mas...
 
Os Céus estavam em Guerra.
 
Ela já vivia longe daquele universo, das complicações familiares e dos conflitos divinos fazia muito. E aqui, na pequena cidade em que ela se encontrava, fazia ainda mais tempo que as pessoas não acreditavam na sua existência, e nem na de nenhum membro de sua família.
 
Ela suspirou, sentindo as costas doerem, motivo pelo qual permanecia deitada. Ali, em seu pequeno quarto, ela via o mundo ao qual pertencera durante tantas eras, onde fora criada e crescera, se destruir. Não que aquilo fosse uma surpresa (tantas guerras já haviam acontecido antes e o mundo sobrevivido), mas daquela vez, ela sentia que era diferente.
 
Daquela vez, ela sentia em suas costas.
 
Desviando o olhar do céu, que se escurecia com o sumiço do sol e camuflava o incêndio que por lá acontecia, ela se virou de lado, mordendo os lábios para não gritar.
 
Havia uma maçã na escrivaninha ao lado da sua cama, e agora ela pensava na ironia por trás daquilo. Tantas frutas para estarem ali, e justamente a mais conhecida de todas era a que lhe fazia companhia. Apesar da ausência de fome, ela precisava comer, portanto tentou reunir forças e se esticar até a fruta e pegá-la.
 
Uma dor lancinante percorreu a sua espinha e ela gritou, caindo no chão em meio aos soluços.
 
Desde o momento em que decidira deixar de lado as suas obrigações familiares, ela nunca mais havia se lembrado de como era a sua antiga vida. Nada, durante tanto tempo, a havia feito se lembrar de suas origens, e seus pais cumpriram a promessa de que a deixariam seguir o seu caminho. A única exceção seria em caso de guerra. A única exceção estava acontecendo e aquela dor era mais do que um aviso. Era O Chamado.
 
Apertando os dedos contra a escrivaninha, ela sentiu seu corpo se abrir, como se uma navalha a cortasse por toda a extensão de suas costas. As costelas pareciam se deslocar e ela perdeu completamente os sentidos, mas não a dor.
 
Sentiu que um clarão tomava conta de seus olhos fechados e, quando ela os abriu não conseguiu conter um suspiro de surpresa, medo e amor.
 
À sua frente, estava ele, estendendo sua mão para ajudá-la. Ela era muito mais nova que ele, sabia apenas de sua jornada, sua expulsão, tantas Guerras antes, mas ainda assim ele era seu irmão. E, Deus, como ele era lindo.
 
Foi então que ela perceber que o crepúsculo havia dado lugar ao amanhecer. Nada mais propício ao portador da luz.
 
Ela pegou a mão dele com força, sentindo seu corpo ser erguido com facilidade. Foi então que percebeu que não era ele quem a erguia, mas as próprias asas que agora se mostravam firmes em suas costas. Asas que, por tanto tempo, ela deixara de ter.
 
Recebendo um olhar de compreensão, de quem sabia mais do que ninguém o que era ser chamado de volta, eles permaneceram de mãos dadas e subiram aos Céus.
 
 
Em uma Guerra entre Deuses, os Anjos sempre eram os soldados mais fiéis.
 



Foto: Bruno Filipi

segunda-feira, 3 de setembro de 2018

o Véu



Ela estava deitada sobre a relva molhada, amarelada por um pálido e frio amanhecer. Seu corpo estava repleto de gotículas de orvalho, que lhe faziam cócegas na medida em que se espreguiçava... vagarosamente.

Seus dedos dos pés tocaram em florezinhas roxas, que ela sabia estarem ali esperando pela luz do sol para se abrirem. Sorriu. Também ela estava à espera do sol para florir.

Sentou-se num movimento quase em câmera lenta e olhou ao redor, recebendo no rosto o cheiro de um novo dia. Tudo o que via era a imensidão da natureza. O vale florido, as árvores frondosas e a floresta que se erguia escura a alguns pés de distância. Sempre se aproximou da entrada da floresta, decidida a, "dessa vez", aventurar-se por entre suas árvores longas e retorcidas, mas nunca levou a cabo suas intenções.

Naquele momento, entretanto, viu seu pés tocarem os galhos retorcidos da primeira árvore, depois da segunda, terceira, e muitas outras. A luz que iluminava seus cabelos acinzentados fora substituída por uma escuridão quase completa, recortada por alguns finos feixes de luz que conseguiam escapar pelo túnel de galhos retorcidos que se estendiam em direção ao céu.

Ela andou por um tempo que não soube definir, percebendo que não saberia mais encontrar a saída. Entretanto, aquilo não lhe era um problema. Respirava o ar frio da floresta como quem pela primeira vez inspira ar puro e verdadeiro. Sentia como se estivesse de volta ao lar, mesmo que nunca houvesse colocado os pés ali anteriormente.

Crack!, um galho seco se partiu com ruído, assustando-a mais que o normal. Ela olhou para o chão, abaixando-se devagar e notando não se tratar de um galho, mas de uma espécie de varinha, tão retorcida quando as árvores ao redor. Nunca fora de crer em contos de fadas, por mais propícios fossem a estas histórias os locais por onde crescera. Vales verdes e cheios de animaizinhos pequenos e exóticos, castelos e casas circulares, florestas negras e ameaçadoras. Eram tantas as histórias que ouvia desde criança que aos poucos elas, ao invés de se tornarem mágicas, foram ficando maçantes e sem graça.

Pegou delicadamente as duas partes quebradas da varinha e, mesmo sabendo que era de uma tolice infantil, encaixou-as, fazendo com que a varinha se tornasse una de novo.

Um líquido prateado escorreu pela emenda da varinha e a envolveu como um véu de seda. Ela não conseguia soltar o objeto, fosse por tamanho espanto ou por alguma coisa oculta que a fazia continuar segurando-a. O líquido escorreu para as suas mãos e aos poucos envolveu todo o seu corpo, com uma cócega fria e formigante.

Envolvida numa espécie de bolha, ela se sentiu sugada para dentro do sonho que tivera naquela madrugada. Uma mistura de vozes sussurrantes, mãos sem dono e uma canção infantil que a faziam se sentir muito bem. Seus pés já não mais tocavam o chão e ela era guiada pelas mãos indefinidas em direção ao desconhecido; uma rainha louvada por súditos fiéis.

O frio e o formigamento sessaram. Ela abriu os olhos e notou que segurava apenas a parte inferior da varinha. Olhou no chão ao redor, procurando a parte faltante, mas não conseguiu encontrá-la. Não havia vestígios do líquido prateado que a havia envolvido, nem mesmo a varinha agora parecia mais do que um mero galho partido. Resolveu guardá-la, contudo, como uma espécie de troféu de sua primeira andança pelas florestas.

Olhando para frente, notou que as árvores agora se abriam para um caminho relativamente largo e iluminado por uma cor azulada. Quase na linha do horizonte, ela avistava o pequeno castelo onde morava.

Recomeçou a andar, com os olhos fixos no castelo, mas deixando o pensamento naquele lugar que ela, pela primeira vez, considerava mágico. Pretendia buscá-lo depois.

Imagem: Pinterest -
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Por Bianca Rolff

segunda-feira, 11 de junho de 2018

Profundas Minúcias



Ele acordara com o peito ardente, a boca seca e o bolo - aquele bolo que habitava sua garganta havia tempos - mais incômodo do que nunca.

Às vezes ele se sentia pequeno. Não em tamanho, - ele se sentia ok sobre isso -, mas por seus pensamentos. Era como se, por vezes, o ar o comprimisse para dentro de si mesmo e ele perdesse o controle das ideais.

Na noite anterior, ela o levara em casa e ele se sentiu diferente. Não, não era clichê, desses ditos para a pessoa de quem se gosta. Ela o havia feito se sentir... pequeno. Toda aquela segurança, todo o seu jeito de lidar com as coisas, o modo como ela conseguia dirigir a vida e o próprio carro como se nada mais importasse. Ele se impressionara, de um jeito que não fazia há bastante tempo. Era um misto de admiração e medo. Ele tinha medo de não bastar, de sucumbir antes mesmo de iniciar a subida.

Era o efeito da adrenalina em um esporte radical.

Fazia frio naquela manhã e nem mesmo o chá quente em suas mãos parecia adiantar. Todavia, o frio em sua pele atestava que ele estava vivo, lhe dizia para respirar fundo, ainda que a compressão em sua cabeça continuasse exponencialmente. Ele saiu para a varanda e, tirando um cigarro recém bolado de dentro do bolso do moletom, acendeu-o.

Inspira...

Prende...

Expira...

Os círculos de fumaça sempre foram algo que ele almejara conseguir fazer. Ainda estava tentando.

O frio concentrava-se em seus lábios como se nenhuma outra parte do corpo tivesse importância. Ele sentia a pele da boca se dividindo com um mísero movimento, o gosto do sangue se misturando ao da erva a queimar sua garganta.

A ardência do peito diminuiu. A pressão sobre sua cabeça pareceu ceder um pouco. Mas não havia nada que ele pudesse fazer com o bolo.

Ele apagou a ponta do cigarro na parede, guardando-a no bolso e entrou em casa. Serviu-se novamente de chá, colocando por cima da xícara nova a tampa de pressão, tudo comprado na loja de artigos importados, aquela famosa. Foi até o quarto e, sem acender a luz, agachou-se ao lado da cama, colocando a xícara no móvel de cabeceira.

Ela dormia um sono profundo e tranquilo, enrolada até o pescoço no cobertor de lã surrado. Ele teve vontade de acariciar seu rosto, fazer cafuné em seus cabelos embolados num coque estranho que só ela sabia fazer,  mas preferiu não ser a causa de seu acordar repentino.

Ficou ali, olhando para ela no escuro do quarto por um tempo incontado. Ela era gigante. Aqueles um metro e sessenta pareciam dois. Sem esforço ou premeditações, ela crescia, brilhava e ele se pegava acanhado e amedrontado, quase como um menino que tentasse andar de skate pela primeira vez.

O bolo em sua garganta se moveu, para cima e para baixo. Se tivesse sabor, ele uma vez pensara no assunto, com certeza seria de algo bem amargo. Certamente não chocolate. Ele engoliu a saliva com força, buscando amaciar o que quer que estivesse morando em sua garganta. O movimento fez seu peito arder e ele perdeu o equilíbrio, apoiando-se na mesa de cabeceira e rangendo o chão.

Ela se moveu felinamente na cama, abrindo aqueles olhos grandes e borrados de maquiagem, fixando-os nele.

Sol.

Calor.

Sorrindo, ela esticou as mãos, tocando-lhe os cabelos desgrenhados. O que quer que ele tinha na garganta e no peito fizeram uma festa dentro dele, parando no estômago.

- Você está com cheiro de chá - ela disse, como se aquela afirmação fosse a mais importante do mundo naquele momento.

- Eu ouvi dizer que você gosta muito de ervas - ele disse, completando o ciclo de duplos sentidos.

Abrindo ainda mais o sorriso, ela pegou a xícara da cabeceira e, recostando-se na cama, começou a beber. Ele se levantou e saiu do quarto, abrindo um pouco da cortina ao passar.

Ele não era bom com palavras, por isso fugia de conversas longas. Mas desde a noite anterior vinha pensando na maneira mais bonita de dizer que sentia por ela aquele grande clichê.

Ele sorriu, passando os dedos entre os cabelos. Realmente estava cheirando a chá.


- B. R.