Estava atrasada
para a faculdade. Como conseguia não levantar com o som gritante do despertador
de seu celular?! Já há muito tempo colocara como toque "Blinded in
Chains", do Avenged Sevenfold, pois esperava que o bum inusitado da bateria logo nos
primeiros acordes da música fossem capazes de jogá-la para fora da cama.
Mas lá estava
ela, atrasada, suada e cheia de livros nas mãos. Odiava sair de casa sem tomar
pelo menos uma ducha. Sentia-se suja - como de fato estava - e imaginava que
todos soubessem que ela não havia tomado banho, ainda que seu último tivesse
sido antes de dormir. Tinha TOC por limpeza pessoal.
O ponto de
ônibus era a três quadras da sua casa. Duvidava que conseguiria chegar até lá a
tempo de pegar o ônibus das seis e meia. Como se odiava por não conseguir
levantar como uma pessoa normal!
Apertou o passo e seguiu adiante, sem olhar para os lados, sonhando com um
atraso inesperado do lotação.
Enquanto andava,
ia revisando o trabalho que teria para apresentar. "O termo Cultura possui inúmeras concepções, dentre
as quais engloba as diversas manifestações artísticas, folclóricas,
étnicas, inclusive educacionais, contidas em uma sociedade, como um
conjunto de ideias, tradições e modos de vida, que são demonstra..."
Faltando menos
de meia quadra, o ônibus entra na rua. E foi como se tudo fosse captado em slow motion:
Ela começou a
correr, enquanto não perdia de vista o automóvel que estacionava. Atravessou a
rua em disparada, sem notar a Ninja que se aproximava mais rápido do que o
vento. Tudo o que ouviu foi um zumbido próximo e uma forte dor se apoderou de
suas costas. Depois, o mundo caiu vertiginosamente e foi tomado pela escuridão
da morte.
*-*-*
Morrer.
Se a morte fosse
mesmo assim, nada do que diziam era verdade. Tudo estava escuro. Não havia luz
no fim do túnel. Aliás, esse papo de túnel era furada. Ela não conseguia nem
ver um palmo à sua frente. Tanto poderia haver um túnel, como um matagal, uma
praia ou um desfile de escola de samba. No meio daquele eclipse total,
ela nem mesmo conseguia saber se estava mesmo ali, ou apenas sonhando um sonho
dolorido e...preto.
A dor... agora
ela sentia. Podia perceber que estava machucada, mas não podia dizer o quanto.
Foi então que tomou consciência de que não poderia estar morta. Não. Na morte,
não havia dor. Nada de purgatório, umbral, ou essas besteiras. Ela não
acreditava. Não havia dor depois da morte e isso era para ela seu maior
consolo. E se conseguia perceber o corpo latejando, era porque ainda permanecia
viva... sabe-se lá porquê.
Como que por
mágica, a luz foi penetrando em seus olhos e aos poucos o silêncio do eclipse
foi sendo substituído por vozes, bem ao longe, e um vulto foi tomando forma à
sua frente. Seus olhos estavam embaçados, e ela percebia que havia lágrimas
ainda molhadas nos cantos e em suas bochechas. Ia levando a mão aos olhos, mas
algo tocou seu rosto mais rápido. Eram dedos. Delicados, macios. Eles limparam
suavemente seus olhos e aos poucos o vulto à sua frente foi se tornando mais
nítido.
Era um rapaz de
cabelos loiro-acobreados. Parecia um pouco mais velho que ela. Seus olhos
ardiam de preocupação, isso ela conseguia perceber em meio ao caos em que se
achava. E esses olhos... Tinham uma tonalidade arroxeada que ela imaginava que
só Elizabeth Taylor poderia ter. Então ele perguntou, a voz trêmula:
- Olá... Você
esta bem? Qual o seu nome..? Consegue me ouvir?
-
Oi...Sim...Manue..lla...Sim... - ela disse, sem saber se ele entenderia que ela
acabava de responder a todas as perguntas, prontamente, em ordem.
- Bem.. Menos
mal. Consegue se mexer? Tenho a impressão de ter quebrado você ao meio...
Perdoe-me, eu... Só não queria..
- Tudo bem... -
Manuella o interrompeu, achando aquelas explicações desnecessárias - Estou
bem... Ai!
Pensando bem, era
como se um rolo compressor houvesse passado por sua cintura.
- Acho que...
preciso de ajuda para levantar... Mas, ei... Quem é você...?
Ela sentiu que
algo passava gentilmente por suas costas e a erguia com cuidado. A dor não
estava mais tão forte, mas suas pernas estavam começando a ter câimbras. Ele a
colocou sentada, ainda com as mãos apoiando suas costas. Mesmo agachado, ele
parecia alto. Soltando um suspiro que parecia de alívio ele disse:
- Helel. Meu nome é Helel.
Então, ele se chamava Helel.
Um nome diferente, peculiar, para não dizer o nome mais esquisito que Manuella
já havia escutado em toda sua vida. Mas por outro lado, em meio às lágrimas e à
dor, Helel parecia um dos homens mais bonitos que ela já havia visto.
Era loiro. E isso, sim, era estranho. Tinha uma certa
tendência a gostar de morenos, simplesmente por achar que loiros não tinham
muita graça. Seus cabelos aguados nem a faziam sentir borboletas no estômago.
Piscando com mais intensidade, para retirar os últimpos
vestígios lacrimosos dos olhos, Manuella conseguiu dizer:
- Bem... Acho que devo lhe agradecer. Você parece ter salvo
minha vida. Obrigada.
- É, eu realmente salvei você - disse Helel, ainda
apoiando-a pela cintura - Mas parte da culpa por você estar assim é minha,
também.
- Oi? Como é? - Manuella o encarou, achando que ele
provavelmente tivesse batido com a cabeça mais forte do que ela.
- Se não fosse por eu ter entrado tão rápido na rua, você
não teria se acidentado.
Encarando-o ela estava, encarando-o ela permaneceu. A única
forma de suas palavras fazerem sentido era Helel ser o motorista da Ninja, mas
se ele estivesse dirigindo, não conseguiria salvá-la sem se matar.
A história ficava sem sentido do mesmo jeito.
- Olha, Helel, não sei bem se enten...
Mas ela não conseguiu terminar a frase, pois nesse momento,
uma ambulância chegava ao local para socorrê-la.
- Menina! O que faz de pé!? - uma socorrista exclamou,
olhando furiosa para Helel - Foi você?!
- Ela está bem - Helel disse, e Manuella não soube
explicar, mas a socorrista pareceu acreditar no que ele dizia.
- Ainda assim, vamos levá-la.
- Estou bem - Manuella concordou - Acho que se eu for para
casa e me deitar, vou melhorar bem rápido (Adeus trabalho de faculdade,
mesmo...).
- Eu fico com ela, se ela permitir - Helel disse, e para
sua própria surpresa, Manuella se viu assentindo.
- Nesse caso, dou-lhes uma carona até lá - disse a socorrista, já os
empurrando para dentro da ambulância.
Olhando rapidamente ao redor, Manuella não conseguiu
visualizar a Ninja em lugar nenhum.
Enquanto faziam o pequeno percurso até o prédio de
Manuella, a socorrista e mais um enfermeiro fizeram uma checagem na garota,
para verem se estava mesmo tudo bem. Estranhamente, tudo o que Manuela sentia
era dor de cabeça e um pequeno incômodo na região lombar.
É. Ela era forte.
Ao chegar em seu apartamento, foi amparada pela socorrista
e por Helel, que abriu a porta (como ele conseguira a chave?) e a colocou em
sua cama. Seus livros também foram colocados em sua estante, delicadamente, o
que ela muito agradecia. Depois de fazer um milhão de recomendações as quais
Manuella sequer ouviu, a socorrista foi embora, deixando-a apenas com seu mais
novo conhecido.
E, então, o silêncio. "Um silêncio em três
partes", pensou ela, lembrando-se dos livros de Patrick Rothfuss. Ela riu,
percebendo que não tinha sido uma boa ideia.
- Aaai! - ela exclamou, colocando as mãos nos quadris.
- Rir não é o melhor remédio, garanto - Helel disse com um
sorrisinho, encaminhando-se para a janela.
Ele permaneceu ali por instantes infinitos, até que
Manuella não aguentou mais.
- Está com medo de algo? Não acho que meu atropelador
consiga chegar ao décimo segundo andar.
Ele a olhou surpreso, como se a visse pela primeira vez.
- Nunca duvide... Mas não, eu estava apenas conferindo a
movimentação. Você deu sorte de não ter muita gente nas ruas a essa hora. Seria
muito irritante ser importunada nessa situação.
- Dei sorte? Creio que dei muito azar. Nesse horário, nem
pessoas nem carros aglomeram as ruas. Mesmo assim, consegui ser
atropela...aaaaiiii!
Helel estava apertando os dedos contra a têmpora de
Manuella, atitude que ela não entendia, e que doía muito.
- Pare com isso! Já! - ela exclamou, tentando - em vão -
tirar as mãos dele de sua cabeça - Isso DÓI!
- Calma, você deveria relaxar... Só estou fazendo uma
massagem que aprendi há muitos anos... Você vai ver, ficará bem melhor em
alguns minutos.
Ainda contrariada, Manuella deixou-se levar pela massagem
dolorida de Helel e fechou os olhos. Não acreditava na reviravolta do seu dia.
Num momento, estava preocupada com o trabalho que teria para apresentar. No
outro, estava preocupada em não deixar que um desconhecido a deixasse com
sequelas na cabeça.
A vida é mesmo louca, pensou.
E Helel até que não tinha as mãos tão pesadas quanto achara
a princípio.
Ele a salvara... E estava lhe fazendo massagem... Afinal,
tinha que ser alguém legal... Ainda que com nome estranho...
Manuella acordou com o quarto numa penumbra só. Tateando à
procura do abajur, encontrou o interruptor e o acionou. Seu quarto parecia
um ambiente de filme de terror: escuro, frio, deserto...
Helel.
Ele não estava lá.
Levantando-se com cuidado, Manuella percebeu que não sentia
mais tantas dores pelo corpo. Se aquilo tinha sido efeito da massagem de Helel,
meu Deus, ela queria aquilo todos os dias!
Encaminhou-se até a cômoda e olhou as horas. Neste
instante, o relógio badalou: seis da tarde.
Ela havia dormido por quase doze horas. Isso era mais
assustador do que ser atropelada.
Foi então que ela viu sua pequena bandeja de inox em um
canto da cômoda. Em cima dela, açúcar, um saquinho de chá de erva doce e uma
chávena com água quente. Havia um papel dobrado por cima do açucareiro.
"Relaxe... Se acha que tem azar, creio que tenho muita
sorte. H."
E da mesma forma como havia surgido, ele se ia.
Como fumaça.
Imagens: web
- Bia
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